Depois das grades, eles tentam se ressocializar e se inserir no mercado de trabalho
Nessa reportagem:
- Histórias e transformação: As histórias de Galeguinho (Emerson) e Canetinha (Ítalo) revelam contextos desafiadores que os levaram a escolhas prejudiciais. A transição de sonhos perdidos para redenção e transformação é uma jornada inspiradora.
- Sistema prisional e reinserção social: A experiência no sistema carcerário, marcada por condições desumanas e violência, destaca a falta de foco na ressocialização. As dificuldades enfrentadas após a liberdade evidenciam estigmas sociais que dificultam a reinserção.
- Injustiça estrutural: O cenário da criminalidade juvenil reflete desigualdades sociais e a falta de investimento em programas de reintegração. Os dados sobre a população carcerária e o investimento desigual entre policiamento e reintegração ressaltam questões estruturais.
Emerson, o Galeguinho
Era nas ruas da Santa Maria Sul, quadra 100, que o futebol entre a molecada rolava. No lugar do campo verde de futebol e as chuteiras, o chão batido e os pés descalços. Em meio aos garotos suados que se divertiam com a brincadeira, estava o “Galeguinho”. Ele nutria um sonho: ser jogador de futebol. Galeguinho frequentava a escola e, nas horas vagas, gostava de treinar para os campeonatos que o time participava. O menino de família humilde não tinha chuteira, meião ou esperança. Mas lembra com carinho daquele tempo porque sobrava liberdade. Até o dia em que tudo mudou. As grades entraram no jogo.
Filho do meio, o pai era vigilante e, quando podia, complementava a renda como ajudante de pedreiro. A mãe era diarista. Foi em meio a essa realidade de escassez que Galeguinho marcou um ‘gol contra’. Na grande área, acabou se envolvendo com furto e roubo. Aos 17 anos, passou de Galeguinho para “Emerson Franco”, adolescente recluso pelo Centro de Atendimento Juvenil Especializado (CAJE), em Brasília. Lá não tinha nem liberdade nem esperança.

“Eu sempre tive muita consciência das escolhas que eu fiz e faço, mas acho que era muita revolta, muita indignação com a desigualdade social, com o Estado que sempre foi muito ausente com a dificuldade que a gente passava na quebrada.”
Da adolescência para a vida adulta, no crime foi como um instante. O garoto que então sonhava ser jogador de futebol teve o sonho adormecido. A realidade era de violência, criminalidade e punição.
“Entrar pra criminalidade era algo pra descontar em alguém, sabe? Aquela revolta daquele sofrimento que a gente tava passando…quando eu vi, eu já tava praticando delitos, furtos, assalto e tal”
Foto: Arquivo pessoal
Quando Ítalo deixou de ser Canetinha
Não muito longe da Santa Maria Sul vivia o “Canetinha” em uma casa na M Norte. Ítalo Jardel de Souza era um menino simples, de família humilde, seu lazer preferido era o desenho. O garoto que nunca conheceu o pai passou por vários lares durante sua infância. A avó materna, na intenção de dar melhores condições ao neto, mandou Canetinha para o Maranhão sem que a mãe soubesse. O menino que não conhecia o pai, estava agora sem a mãe, trilhado um novo caminho, sozinho…
Com apenas três anos de idade, Ítalo conheceu a nova casa. A mãe adotiva, Benedita, era cuidadosa mas também não tinha muitos recursos financeiros. Por um momento, o menino, aos oito anos, teve que deixar os papéis, as canetas e as tintas de lado. O companheiro se tornou um carrinho de picolé, de onde tirava o sustento para ajudar Benedita.
Mas a sorte não estava do lado do garoto, foi em um acidente que perdeu a mãe adotiva. Novamente, Canetinha estava desamparado.
Após a morte da mãe adotiva, Ítalo foi acolhido por uma outra família. A esperança de um futuro melhor passou a crescer novamente. Foi com o passar do tempo que a disciplina rígida da família tornou-se uma rotina de agressões contra o garoto. Vendo essa situação, a avó biológica resgatou o menino. Em 1994, aos 10 anos, Ítalo volta a morar em Brasília com a avó e as tias.
O sonho de viver de arte não tinha sido deixado de lado, mas as condições que Ítalo vivia, a falta de apoio e incentivo da família dificultavam torná-lo realidade.
“Os professores iam ver eu estava desenhando, não estava fazendo lição, quando era na reunião os professores falavam né? Eu apanhava em casa, ficava muito de castigo. Uma vez eu pedi pra fazer um curso de desenho…. ela [avó] falou vai estudar que tu tem mais futuro”
A revolta, a violência e o desamparo fizeram parte da vida de Ítalo desde a infância, mas foi na adolescência que esses sentimentos se intensificaram. Nas ruas da M Norte a rivalidade crescia entre os adolescentes de quadras diferentes, disputa de território e pontos de venda de drogas eram cenas comuns. Foi durante o início de sua adolescência, que assim como Emerson, Ítalo se viu envolvido com diversos delitos.
Em 2006, com 21 anos de idade, foi detido pela primeira vez, ele tinha acabado de conseguir um emprego como pintor, a vontade era desenhar uma nova história. Mas cometeu um erro que não podia ser apagado com borracha, o rapaz foi abordado por duas viaturas do Bope quando estava fazendo o transporte de drogas de uma rua para outra a pedido de um “amigo” da antiga vida.
Após cumprir 2 anos da pena em regime fechado, Ítalo passou a trabalhar com a pintura de casas e prédios. O sonho de ser artista ficou guardado na gaveta e o grafite passou a ser apenas um hobby. O rapaz que trabalha de maneira informal conta que é muito difícil sustentar seus três filhos com o dinheiro que ganha. “Sou autonomo né, daí na época das chuvas as contas apertam porque a procura pelo serviço diminui muito”
Dimensão
As histórias de Ítalo e Emerson não são únicas. O Distrito Federal tem a 2ª maior proporção de jovens cumprindo pena no socioeducativo. Os dados são de 2018 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e mostram que a capital do país tem 22,2 adolescentes presos a cada 100 mil habitantes. A taxa é maior do que em São Paulo e no Rio de Janeiro, as maiores metrópoles do Brasil.
Com o passar dos anos a história tem se mostrado cada vez mais grave. Entre os anos de 2000 e 2022 o Brasil expandiu em 372,5% sua população carcerária. No ano 2000, o Brasil contava com 174.980 pessoas privadas de liberdade, já em 2022, esse número encontrava-se em 826.740 (Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2023) , o que faz o Brasil ocupar o terceiro lugar no ranking de maior população carcerária do mundo.
Mencionar esses dados é importante, mas é ainda mais importante falar sobre o processo de ressocialização desses jovens. São milhares de adolescentes que cumprem suas penas e por falta de oportunidade e incentivo se inserem cada vez mais no contexto de criminalidade.
O estudo de 2021 realizado pelo “Justa”, organização que analisa dados do financiamento e da gestão do Sistema de Justiça “O funil de investimento da segurança pública e prisional no Brasil” aponta que os Estados investem quase três mil vezes mais em policiamento do que em políticas para egressos da prisão. Para cada R$ 2.758 gastos com policiamento nos estados, apenas R$ 1 é destinado para políticas que garantam os direitos de egressos do sistema prisional. Na mesma proporção, R$ 678 são gastos com o sistema penitenciário.

Segundo a diretora executiva do Justa, Luciana Zaffalon, o levantamento reforça a urgência dos governos repensarem o desenho da política criminal e interromperem a retroalimentação de um sistema que gera ainda mais violência. “É fundamental reverter essa lógica de gastar mais com polícia e repressão e menos com quem está saindo da prisão. Só assim teremos condições de reduzir o encarceramento em massa e, então, romper com o atual ciclo de violência institucional produzido pela passagem pelo cárcere e com a consequente exclusão social.”
Reincidência
O relatório do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), apontou que a média de reincidência desses ex-detentos corresponde a 21% no primeiro ano, progredindo a uma taxa de 38,9% após 5 anos de saída do Sistema Penitenciário. Foram analisados, no total, a vida de 979 mil presos, entre 2008 e 2021.
O professor de direito Tédney Moreira, pesquisador do tema da ressocialização de detentos, afirma que a pena tem por finalidade deixar o cidadão em circunstâncias adequadas de voltar à convivência com a sociedade. “A pena não deve ter apenas o caráter de punição, mas também de ressocialização ou reintegração, isto é, de propiciar meios de que a pessoa em custódia estatal possa voltar à sociedade sem delinquir”.
Tortura
Embora esse cenário seja o ideal, não é exatamente assim que a história acontece. “A experiência no Caje foi a que mais marcou a minha vida”, comentou Emerson em entrevista. Em 2006, o jovem passou por sua primeira apreensão.
O antigo Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje) foi demolido em 2014. Desde sua fundação em 1976, dois servidores e 30 adolescentes morreram. Além disso, a superlotação foi um fator que sempre esteve presente.
Um quarto comum, projetado para abrigar uma ou duas pessoas, no máximo, chegou a acolher seis indivíduos. Atualmente, o Sistema Socioeducativo conta com nove Unidades de Internação, seis Unidades de Semiliberdade e 15 Unidades de Atendimento em Meio Aberto, e 1.091 socioeducandos em acompanhamento no total.
Questionada pela reportagem, a Secretaria de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (Sejus-DF) optou por não se pronunciar a respeito dessas mortes e sobre as condições de vida dos socioeducandos do Caje, mas alegou que “Os adolescentes vinculados ao Sistema Socioeducativo são atendidos de modo integral, com a garantia de direitos e acesso a serviços sociais, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É importante dizer que não há superlotação, o que confirma o atendimento íntegro e humanitário entregue aos socioeducandos.”
Quando Emerson saiu do Caje, não tinha mais bola, gol, nem festa, nem aula. Ele estava assustado, guardava com ele as fortes lembranças que viveu no Caje. Mas esse sentimento se transformou em uma revolta ainda maior. E novamente a vida de crimes voltou a fazer parte da sua história.
Foi em 2008 que Emerson chegou à Papuda. Com o passar dos anos a ficha criminal ficava cada vez mais extensa: assaltos, porte ilegal de arma, tráfico de drogras, corrupção de menores. Ao todo, foram quase sete anos de prisão em regime fechado, após condenação a 17 anos em segurança máxima. O cenário da papuda conseguia ser ainda pior.
“Eu cheguei numa cela, que tinha 34 homens, no Centro de Detenção Provisória da Papuda – CDP. Só que esse espaço físico comportaria no máximo 10 pessoas porque tinha 10 camas mas tinha comigo 34 pessoas. Então parte do meu corpo pra dormir ficava pra dentro do banheiro e outra parte pra fora”
Presos, sem espaço, e sem as mínimas condições de vida, e dignidade. Emerson compartilhava o espaço e a história com 33 homens em sua maioria com apenas o ensino fundamental completo e outros nem alfabetizados eram.
A violência fazia parte da rotina de agentes e detidos, e a falta do acesso a profissionais de saúde levaram muitos deles a perder a vida. Violência velada e mortes sem respostas.
Entre as diversas histórias de companheiros de celas que foram perdidos dentro do sistema prisional Emerson relata que um companheiro que ia para o castigo constantemente era muito perseguido por causa do crime que ele cometeu contra a corporação. “Um dia, o corpo dele foi encontrado morto dentro da cela”.
A experiência do ítalo também não foi muito diferente, corte de água e luz, destruir pertences e molhar os colchões eram os castigos menos severos. Além das torturas psicológicas, da dificuldade no acesso aos remédios e profissionais da saúde.
“Quando eu cheguei lá, a primeira coisa que o comandante da cadeia lá falou foi que o nosso direito era não ter direito… Um cara de Ceilândia deu um ataque de asma uma vez, chamamos os policiais, eles botaram ele na gaiola no meio do relento e jogaram água nele. No outro dia ele já amanheceu duro”
Em seu tempo livre Emerson passou a se ocupar com diferentes tarefas, trabalhou na cantina, na limpeza, e na biblioteca “É como dizia os Racionais, era preciso matar o tempo para o tempo não matar a gente”, relembrou em entrevista. Mas foi pelos livros e pela escrita que Emerson se apaixonou.
Emerson passou a ler e escrever, ele ajudava outros detentos a redigir e ler as cartas que chegavam das famílias. Passou então a ser chamado de “professor” pelos colegas de cela.
Papel e caneta eram artigos de luxo na Papuda. A solução era cobrir embalagens e jornais com creme dental. O lápis era improvisado, feito com pólvora de palito de fósforo. Os dias se passavam e o “professor” escrevia suas vivências dentro do cárcere. Os relatos que um dia foram apenas desabafos se transformaram em um livro. “O livro surge dessa necessidade de contar a minha história de vida, mas também de denunciar a podridão do sistema prisional”
Um recomeço…
Depois de cumprir sua pena, não havia mais pendências com a justiça Brasileira. Em 2016, Emerson estava livre. O rapaz que um dia foi “Galeguinho”, “Emerson Franco”, e o “Professor” tinha agora um novo rótulo, quase uma sentença, agora ele era: ex-presidiário.
A busca por um emprego digno havia começado, mas não foi tão simples: “Eu participava de processos seletivos e entrevistas de emprego ia bem nas prova, redação mas eu nunca era contratado porque quando chegava na parte da entrega de documentação pedia o nada consta criminal e aí infelizmente ia constar muita coisa ao meu desfavor então eles não me davam oportunidade”
As algemas que, nesse momento, prendiam Emerson não são as mesmas de anos atrás. O estigma e o preconceito da sociedade condenaram ele para sempre, reduziram todas suas vivências e quem ele é para um único rótulo.
“O processo de ressocialização é muito complicado. Primeiro, porque o preconceito é muito grande e a sociedade é muito preconceituosa. Como você ressocializa alguém que nunca foi socializado? Muitas pessoas defendem o discurso de que bandido bom é bandido morto, eu já ouvi isso muitas vezes.”
O rapaz recém egresso do sistema penitenciário e pai de uma menina de 3 anos na época, precisava de um meio de sustento para a família. Com a falta de oportunidade, usou o trabalho informal como meio de sobrevivência, passou a ser vendedor ambulante. Mas a realidade não era fácil, a dificuldade fazia as antigas sombras tentarem reaparecer.
“Eu não queria voltar para a criminalidade, mas ela tava ali… o tempo todo querendo me abraçar”. A face da crueldade se apresenta até dentro da escola. Ele lamenta que a filha teve que mudar de lugar de estudo porque era vítima de piadas de colegas e olhares curiosos porque o pai passou pelo sistema penal.
Em meio aos conflitos internos, o desejo de mudar de vida e dar um futuro melhor para a filha falou mais alto. Foi na educação que Emerson conseguiu dignidade, terminou o ensino médio em uma escola em Santa Maria, e incentivado pelos professores Antônio Gonçalves e Dinar Ramos, que Emerson prestou vestibular e entrou para o curso de sociologia.
Paralelo aos estudos, surgiu o projeto “Papo Franco” que começou lá em maio de 2016 assim que Emerson saiu da cadeia. Ele conversava com a molecada da sua quebrada sobre sua história e tentava alertar os meninos. Em pouco tempo Emerson estava palestrando em escolas, unidades socioeducativas em diferentes Estados do Brasil.
Depois de formado, em 2021, Emerson prestou o primeiro concurso da sua vida para o cargo de professor temporário de sociologia da Secretaria de Educação. Aprovado na avaliação: sua história passa a tomar um novo rumo.
Hoje, seu projeto “Papo Franco” já passou por mais de 400 escolas do DF e do Entorno e mais de 39.500 estudantes contemplados. O livro “Francas Palavras” foi publicado em fevereiro deste ano pela Avá Editora.
Pelo corpo, 30 tatuagens contam um pouco da sua história. Entre elas, o nome da mãe e do avô, a data de nascimento das duas filhas Catharina e Manuela e a mais significativa segundo ele: a palavra “Liberdade”.
Foto: Wagner Moreira/Reprodução

“A palavra liberdade para mim simboliza muita coisa porque uma vez que tu passa pelos espaços de privação tu perde a tua liberdade eu acho que é o maior bem que o ser humano tem. Quando você reconquista, não quer nunca mais perdê-la. Mas essa liberdade não é apenas do corpo físico. Eu quero ela em toda a sua essência psicológica, mental, espiritual, emocional, de ser quem eu quiser ser, ter a profissão que eu quiser”, diz o professor que, finalmente, se sente em liberdade.
Assista o documentário completo:
Por Cecília Ledo
Supervisão Luiz Cláudio