Famílias em casas cobertas por lonas vivem de doações na Asa Norte

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A comunidade tem nome: Cerrado. Um lugar com cinzas, lixo por todo o lado, restos de alimento, roupas no chão e oito famílias que moram nos barracos espalhados no local. A comunidade à beira da calçada não tem cenário de cerrado, mas ladeada por estabelecimentos de área nobre de Brasília. Ao lado de prédios, igrejas e instituições particulares, uma população sobrevive de doações e reciclagem de materiais. Pessoas que têm sonhos, medos e inseguranças.

A vida

“25. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde, bem-estar, inclusive alimentação(…)” (Artigo 25 da Declaração dos Direitos Humanos)

Oito famílias moram na comunidade, localizada na Asa Norte (Foto: Rayssa Loreen)

Aline Conceição, de 35 anos, diz que nasceu no local e vive lá até hoje. Agora, com uma família formada: marido e dois filhos, uma menina, de 14 anos, e um menino, de 13. Eles recolhem caixas de papelão e garrafas pet pela cidade.

Atualmente, o trabalho é feito com um carrinho emprestado, já que o que era deles foi recolhido pela fiscalização de agentes do DF Legal. Ela lamenta que a situação não está fácil. “Parece que cada dia tá se complicando mais”.

Todos os dias, Aline sai de casa para recolher o material que é entregue a cada 15 dias. Durante a pandemia, ela ficou acompanhada das crianças e o marido trabalhava com outro carrinho.

A rota de busca por materiais a serem reciclados não tem uma distância estipulada. O objetivo é encher o carrinho. Todo esse trajeto é para conseguir ao menos se alimentar.

“Hoje eu trabalho para ter o que comer”. O luxo não é possível e o esforço, por vezes, é para que os filhos tenham uma vida melhor.

Aline estudou apenas até o oitavo ano. Por coincidência, é a série em que a filha, de 14 anos, está agora. Porém, ela garante que a história da filha será diferente. Aline não abre mão da educação de nenhum dos filhos. Com o ensino virtual imposto durante a pandemia, os filhos não conseguiram frequentar as aulas, já que ter acesso à internet é um luxo distante para essa família.

Para estudar, foi necessário buscarem as atividades na escola, que fica em Sobradinho – mais de 20 km de distância da comunidade do Cerrado. Além disso, a mãe garante que não mede esforços para ajudar os filhos adolescentes nos estudos.

Por não conseguir ajudar nas atividades, Aline saía pelas quadras da Asa Norte pedindo ajuda para que alguém ajudasse os filhos a entenderem as lições. “Não aprendeu muito, mas os deveres a minha filha não deixou de fazer”. Durante esse período, também, as crianças ajudavam a mãe na procura por materiais de reciclagem.

“23 Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.” (Artigo 23 da Declaração dos Direitos Humanos)

Em outro espaço da comunidade do Cerrado, mora Otílio Nascimento, de 48 anos de idade. Nascido em Santa Rita de Cássia (BA), ele explica que veio para Brasília com a mãe e as irmãs ainda quando criança. Hoje, pai de 10 filhos, é reciclador e tem um barraco de lona encostado ao muro.

Otílio é um dos moradores da comunidade do Cerrado (Foto: Rayssa Loreen)

Sobrevive com o pouco que recebe de doações, mas diz que nunca lhe faltou comida. O que recebe, ou o que conquista com o trabalho, ele diz que leva para a família que mora na Cidade Ocidental (GO).

Ele lamenta que não tem qualquer benefício social. “Uma pessoa pegou meu documento para fazer (o cadastro do) Bolsa Família, mas até agora nada”.

Apesar de não morar com a mulher e os filhos, Otílio ainda manda o pouco que ganha para ajudar a família. Ele comenta que tem período que atrasa uma ou outra conta e tem que fazer “o jogo de cintura” para conseguir pagar tudo.

Um dos desejos do coração de Otílio é voltar a trabalhar. Ao longo da conversa com a reportagem, ele destaca que o maior sonho que tem é voltar a ter um emprego. Contudo, o mundo se transformou após enfrentar uma pandemia.

Desde o início da crise, ficou ainda mais difícil encontrar emprego. Antes, o homem trabalhava como bombeiro hidráulico e ficou mais de 20 anos nessa área. Em Goiás, ele ficou empregado em uma fábrica de colchão por dois anos. Mesmo assim, dorme nas ruas com um colchonete. “É puxado”, avalia.

“Nem tudo o que vem à rede é peixe”: A realidade de Otílio tem mais um contraste. A comida preferida dele é peixe, apesar de não conseguir ter acesso com frequência. A poucos metros do barraco onde ele se abriga, quem se aproveita do alimento são as moscas. Quem domina o animal é a sujeira e um sutiã velho.

Um peixe, comida favorita de Otílio, estava em meio ao lixo próximo dos barracos (Foto: Rayssa Loreen)

Otílio reclama de que até tenta, mas não consegue deixar o lugar limpo. “Eu faço uma limpeza toda semana ou todo dia, depende do momento. E aí vem e bagunça”, falou. “Se [O governo] ajudasse com maquinário, essas coisas, pra deixar tudo limpinho, ajudaria muito”.

“12 Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.” (Artigo 12 da Declaração dos Direitos Humanos)

A fiscalização

O medo domina os corações dos moradores da comunidade do Cerrado, como Otílio e Aline. O pouco que eles têm é constantemente ameaçado por quem deveria proteger.

A Secretaria de Estado de Proteção da Ordem Urbanística do Distrito Federal, o DF Legal tem, por lei, a função “de promover o crescimento ordenado da cidade dentro da legalidade”.

Os moradores da região afirmam terem medo daqueles que deveriam ajudá-los, como o DF Legal (Foto: Rayssa Loreen)

Otílio relembra, com tristeza, quando sua filha, à época menina, presenciou a destruição dos que eles chamavam de casa. “Ela era pequena, agora já está mocinha. Mas, eles vieram e pegaram tudo da gente. Derrubaram tudo e deixaram eu e ela debaixo do sol quente”, relatou, desolado. “Eu não gostei dela ficar olhando para aquilo tudo. Imagina um pai, né. Eu não gostei daquilo e até hoje eu penso nisso”, disse.

A percepção de Aline não é diferente. Viver em meio ao mínimo já é difícil. Viver com medo de perder o mínimo é pior ainda. A mãe relata que, na maioria das noites, a família dorme com medo de ter suas mercadorias roubadas e acorda com medo de destruírem suas coisas. “Eles [o DF Legal] vêm e levam tudo: roupa, documento, tudo que é nosso”, afirmou.

“3.Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”
(Artigo 3 da Declaração dos Direitos Humanos)

*Os representantes do DF Legal não responderam a nossa equipe.

Para ajudar a família de Aline, a chave do pix é: (61) 995569943

Por Gabriela Bernardes e Rayssa Loreen

Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira

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