Doze anos. Rafael* é uma criança, mas de olhar vermelho e agressivo; pede esmola deitado próximo ao balcão de uma lanchonete, no coração da Capital Federal. É infância, mas nem por isso no caminho deixam de existir pedras. Com a mão direita estendida, espera as migalhas de moedas. Não tem conhecimento do paradeiro da mãe, assim como nunca experimentou o afago paterno. Mesmo que as escadarias da rodoviária sejam o que chama de lar, há menos de dois quilômetros do centro político do país, projetos sociais dos governos distritais e federais nunca encontraram o menino. A pátria para ele é a madrasta. No breu da omissão das políticas públicas, a pobreza e a desestrutura familiar fazem de Rafael um pequeno impossibilitado e sem perspectivas de futuro. Rafael, Bruna*, Igor* e Jorge* são infâncias inventadas, perdera o direito de ser simplesmente criança.
Peregrino da rua há quatro anos, conhece todas as artimanhas necessárias para sobreviver. Por onde ir, quem evitar, o local mais rentável. Filho da rua, tem como irmãos, no Brasil, 23.972 crianças e adolescentes, que se somam a 150 milhões no mundo, segundo relatório da Organização das Nações Unidos. O banheiro próximo à escadaria central da rodoviária deixou de ser de todo mundo, ao menos à noite. É onde a criança dorme. Durante o dia, transita entre milhares de pessoas que passam pela rodoviária. Contudo, Rafael não é como outras crianças que brincam de ser invisíveis. Ele realmente passa despercebido. Mescla-se com a multidão que, junto com os primeiros raios do sol, acordam-no. Precisa dar passagem aos trabalhadores. Dorme pouco e mantém-se acordado sob efeito de drogas. “Moço, ele é ‘noiado’”, entrega o amigo do menino, Mateus, de 16 anos, quando o vê receber uma nota de dois reais. “Aí, lá vai ‘noia’ de novo”.
Renato, pela manhã, ganha trocados daqueles que tomam café em sua casa. É o suficiente para o pastel. Meio-dia se aproxima: é hora da criança “bater o ponto”. Senta-se em uma fresta entre o balcão e o pilar de uma lanchonete, onde diariamente arrecada suas moedas. “Moço”, professa a criança em voz mansa, à espera das sobras. Foi o que ouvi ao visualizar a mão estendida aos senhores que compravam os salgados. Repete a oração, mas não acompanha o pedido com o olhar. Os negros olhos voltam-se sempre para o chão, como criança que, com medo de ser reprimida, desvia a vista em outra direção.
Os olhos de Rafael repelem o horizonte; ele mira apenas para o chão a ignorar o que está em volta. O menino não se encoraja de corresponder o olhar daqueles que, possivelmente, veem-no. A vista está presa ao medo, o que atribui a sua infância um ar desconfiado. Poucas palavras. A inquietude apresenta-se pelo morder do lábio, que se encontram rachados. É um menino ansioso, as pernas balançam. Enquanto caminha, arrasta os chinelos grandes e mantém as mãos dentro dos bolsos do casaco negro, sujo e desbotado, como se mantivesse a posição de proteção. Hoje, é independente e afirma não sabe o motivo que o levou a buscar a rua. “Não tenho história, não. Vivo aqui e é tudo”. A vida do garoto é resultado dos defeitos no sistema social: a indiferença nas ruas, esmola e drogas. Rafael corresponde a uma dessas estatísticas que o governo, na pesquisa realizada em 2012 pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, atribui como motivo pelo abandono do lar: discussão com pais e irmãos (32,3%); violência doméstica (30,6%) e uso de álcool e drogas (30,4%).
Olhos se voltam para o homem que retira a carteira e compra na lanchonete localizada no corredor com maior fluxo. Rafael se levanta de um banco e corre até a lacuna onde é acostumado permanecer. Ele estende a mão e volta a repetir. “Senhor, uma moeda”. Essa história é daquelas que ninguém vê, mesmo que cada um tenha um grau de responsabilidade sobre a vida e o futuro desta criança.

Sinal Vermelho
Para Igor, de 16 anos, a luz vermelha do semáforo é ponto de partida. Sessenta segundos é tempo suficiente para o menino pendurar os pacotes de guloseimas no espelho do automóvel, recolher as moedas, correr parar retirar os que restaram. Nas seis horas que permanece no local, das 13h às 19h, o ato se repete infinitas vezes, faça chuva ou sol. Ao contrário de Rafael, Igor não mora na rua. Toda noite volta para Sobradinho, onde vive com a mãe e com sete irmãos, que alimenta com os trocados do semáforo. Contudo, desde a infância, fez da venda no sinal sua “brincadeira” diária. Essa é a rotina do jovem há três anos, repetida desde os 12, quando trocou a frequência escolar pelos corredores formados pelos carros parados no sinal. “Eu gostava de ir para a escola. Meu primo (me) trouxe para cá e aqui estou”.
A obrigação de trocar os estudos pelo trabalho, junto à distorção de idade e série, a falta de acesso são os principais motivos para que 25,3% das crianças e adolescentes abandonem a escola. A estatística da Organização das Nações Unidas, segundo o Relatório de Desenvolvimento 2012, torna o Brasil o terceiro em taxa de evasão escolar entre os 100 países com maior Índice de Desenvolvimento Humano. É no ensino médio que a maioria desiste. O relatório Crianças Fora da Escola 2012, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), aponta que 534.872 crianças e adolescentes de 7 a 14 anos estavam fora da escola.
Hoje, em frente à Galeria dos Estados, no Setor Comercial Sul, em Brasília, o garoto corre entre os carros que por aí trafegam. “O meu trabalho é esse. Meu tio é segurança. Tenho primos que trabalham com construção. Eu vendo no sinal”. Na principal zona empresarial de Brasília, o jovem que poderia ser aprendiz de qualquer empresa que ali se instala, não tem carteira assinada e direitos trabalhistas garantidos. Contudo, para o oficio, diz encontrar-se em um local que o atribui prestígio. “Esse meu ponto é bom. Passam muitos bancários e consigo dar dinheiro para minha mãe. Ela sustenta a família com isso”.
No Brasil, 143,5 mil crianças e adolescentes trabalharam entre o ano de 2013 e 2014, o que corresponde a um crescimento de 4,5% no ano. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, feita em 2014. De acordo com a pesquisa, na faixa entre cinco e 13 anos, o trabalho infantil cresceu 9,3 % no mesmo período de tempo; no recorte entre cinco e nove anos, o total de crianças trabalhando avançou 15,5 %, e na faixa de 10 a 13 anos o aumento foi de 8,5 %. O trabalho infantil é para o país um dos principais problemas sociais que afetam as infâncias. Igor enquadra-se nessa pesquisa e atribui voz aos dados. Por inchar os números do trabalho infantil, teve a infância roubada. “Eu via meus amigos brincando e eu vinha trabalhar. Isso dói, as foi de boa, passa com o tempo”.
Igor perdeu o entusiasmo diante ao futuro. Não reage quando se depara com a realidade. “Não sei quando (vou) sair daqui. A vida é que vai dizer”. O que tem claro é que não deseja essa rotina para os futuros filhos. “Não sofro, mas não quero isso para eles”. Parado, seu sinal é vermelho e assim como Renato, não vê horizontes. São crianças, adolescentes e jovens com visões nebulosas. O breu da incerteza é o que acompanha essas biografias.
Crianças de bar em bar
Asa Norte. Zona de bares em Brasília. Música alta, luz em penumbra, conversas e risos. Copos e bebidas sobre a mesa acompanham o cachimbo de origem oriental que esfumaça o ambiente. Sábado à noite, a ocasião é de diversão. Contudo, entre fumaças e cervejas, crianças circulam de mesa em mesa na busca de trocados. “É para o gás lá de casa”, profere a criança em um discurso decorado. Não recebe atenção na maioria dos círculos de amigos, mas continua seu dever. Bruna, de quatro anos, mora na Ceilândia. Contudo, durante a noite, a jornada da criança não é na região administrativa fazendo o dever de casa. Com sua mãe, no tardar do dia, pega o ônibus até a rodoviária intermunicipal, onde encontram outros familiares. Juntos iniciam a saga de andarilhar.
Às 22 horas, Bruna já passou por tantos bares que nem lembra a quantidade. Ela saiu de casa quando ainda era dia. Calada, percorre as mesas como presença da criança frágil. Ser porta voz da dupla é responsabilidade de Jorge, tio de Barbara, dois anos mais velhos. Ambos são supervisionados pela mãe, que aguarda embaixo de um dos prédios próximo ao bar. Para eles a vinda para a capital parece um passeio. “É melhor vir pra cá do que ir pra escola”, garante Jorge. “Pra vir pra cá, a gente falta aula, (mas é) pra comprar o gás”.
Bruna quer ser médica. “Quero ajudar as pessoas”. A menina de estatura magra não se importa que poucos estejam desejando a ajudar. Ainda criança, não se infectou com o vírus da descrença. O que não sabem é que é que o fato de estarem “passeando” nas noites de Brasília compromete seus futuros. Segundo o estudo “Trabalho Infantil e Adolescente: impacto econômico e os desafios para a inserção de jovens no mercado de trabalho no Cone Sul”, a evasão escolar de estudantes que trabalharam durante a infância e adolescência é de 40%, devido aos impactos psicológicos.
“Tem um trocado? Sabe por que nos não pode demorar? É que senão nossa mãe briga. Se demora ela briga com nos e bate. Ela grita e bate de sandália nas costas. Tio, pode ir? Eles tão chamando nos”. Depois de 15 minutos na nossa mesa, as crianças se despedem. O saco de pano balança e estala barulhos de moedas enquanto correm para baixo do alambrado do prédio, onde quatro pessoas as esperam. A noite segue. O mês segue. O ano segue. As pessoas seguem; umas com mais chances do que as outras. O que será de Renato, Igor, Bruna e Jorge?
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados.
Por Guilhereme Cavalli