Megaoperação na mídia: a desumanização das mortes no Rio de Janeiro

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A megaoperação policial realizada no Rio de Janeiro no final de outubro expôs mais uma vez a forma como parte da mídia brasileira constrói narrativas que naturalizam a violência e desumanizam populações periféricas. Em grande parte das coberturas jornalísticas, o foco esteve na ação policial em si, no número de mortos, no “sucesso” da operação e na repressão ao crime, enquanto as vidas interrompidas, as famílias atingidas e o impacto social da violência ficaram em segundo plano. Essa escolha editorial não é neutra, revela uma perspectiva que enxerga determinadas vidas como descartáveis. 

Segundo dados da Polícia Civil, disponibilizados pelo Governo do Rio de Janeiro, 117 pessoas foram mortas na operação, 97 tinham passagem criminal. No entanto, as reportagens dos grandes veículos de comunicação, apontam todos como suspeitos, reforçam como ponto positivo da ação policial a apreensão de pelo menos 120 armas de fogo e 93 fuzis. Portais e perfis nas redes sociais expõem sem pudor imagens dos corpos mortos, e a transformação da violência e da morte em um espetáculo, mais uma vez é travestida de notícia e consumida por milhares de brasileiros.

Espetacularização 

Imagem editada

As imagens  foram tratadas como um produto de impacto. As emissoras posicionaram helicópteros, drones e equipes em pontos estratégicos para captar o momento exato em que as forças de segurança avançavam. A narrativa visual lembrava transmissões esportivas, com repórteres anunciando cada movimentação com urgência. A favela, nesses momentos, não aparecia como espaço de vida, mas como área de risco, território hostil e cenário de guerra.

Esse tipo de abordagem transforma a violência em entretenimento. Quando o noticiário privilegia as cenas mais dramáticas, como tiroteios, correrias e batidas de portas, reforça a sensação de que a ação policial é um espetáculo a ser consumido. A ênfase no momento do confronto direcionaa atenção do público para o clímax da operação, enquanto elementos essenciais da realidade local são silenciados, como a rotina dos moradores, os impactos econômicos da paralisação, a interrupção de serviços básicos e a sensação de insegurança compartilhada por todos.

A transformação da violência em narrativa visual empobrece o debate público. O que poderia ser explicado com complexidade acaba sendo condensado em poucos segundos de imagens sensacionalistas. A cobertura se torna rasa e mais preocupada em capturar a tensão do momento do que em permitir que a sociedade compreenda minimamente o que está por trás da operação, quem sofre com ela e porque esse tipo de ação se repete há décadas sem resultados consistentes.

Um exemplo claro que representa a cobertura sensacionalista são as matérias publicadas no Portal Zacarias, autointitulado como o maior portal de notícias, denúncias e entretenimento do Amazonas. As notícias perpassam as fronteiras do estado e reportam casos de todo o Brasil, como o da megaoperação no Rio de Janeiro. Os títulos entregam intenção “Vídeo mostra momento em que homem é baleado e despenca de morro durante megaoperação no Rio de Janeiro. VEJA”; “IMAGENS FORTES! Três criminosos são mortos durante operação Policial no Complexo da Penha e do Alemão, no Rio de Janeiro. VEJA VÍDEO”. Os vídeos não parecem ter sido coletados por jornalistas, mas, sim, pelos próprios moradores das comunidades, e são expostos sem nenhum recurso de edição que preserve suas identidades. Sua dignidade é violada enquanto suas feridas abertas, marcas de tiro e muito sangue são claramente visíveis para qualquer espectador. 

O que nos permite indagar: o que é de fato considerado jornalismo? O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros (Fenaj), propõe no artigo Art. 6º, como dever do jornalista, respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão; e no Art. 11 que o jornalista não poderá divulgar informações de caráter mórbido, sensacionalista ou contrário aos valores humanos, especialmente em cobertura de crimes e acidentes. 

Engajamento e espetacularização: qual a relação entre eles?

No início dos anos 2000, as redes sociais começavam a surgir e fazer parte do cotidiano de adultos e jovens. Hoje é válida a tentativa de observar e entender a mudança no consumo e no fluxo de notícias no cotidiano dos brasileiros. Desde a época mais tradicional do jornalismo até os tempos atuais, há um processo de constante adaptação da notícia, para que seja cada vez mais impactantepara o leitor, o que consequentemente gera mais lucros para os veículos jornalísticos. Mesmo grandes jornais, consolidados na mídia tradicional, se adaptam à divulgação de suas produções nas redes sociais, que com a portabilidade do celular, permitem um acesso fácil e rápido aos sites dos jornais e portais. 

Este processo de mudança e a busca por prender o leitor na informação que está sendo passada tem relação direta com o engajamento. De acordo com o Dicionário, a partir das definições de Oxford Languages, o termo significa uma “participação ativa em assuntos de relevância política e social” e pode ocorrer em uma manifestação intelectual pública de natureza jornalística, por exemplo. E justamente por isso redações entram numa corrida para construir suas reportagens de modo que gerem engajamento nas redes sociais. E neste contexto em que a espetacularização se consolida como uma busca por esse engajamento, o que era só factual ganha uma vestimenta sensacionalista que parte para o apelo emocional. Segundo Maria Izabel Szpacenkopf (2003), em seu livro O Olhar do poder: a montagem branca e a violência no espetáculo telejornal, “o excesso de violência na mídia deve-se ao fato não só de ela já fazer parte de um de seus agendamentos, mas porque constitui um dos temas que mais interessam o espectador […] Violência e horror despertam a atenção”.

A autora também entende que, para o consumo de notícias, é essencial que exista uma sedução, que é realizada por um horror que atrai o público. Para Szpacenkopf, se existe a banalização da violência, isto só é um ponto favorável para que os limites desta banalização sejam cada vez mais ultrapassados. O que contempla a cobertura jornalística da megaoperação por grande parte dos veículos de comunicação.

O discurso “oficial”

Durante toda a cobertura sobre a megaoperação, as primeiras e principais informações vieram de fontes oficiais. Porta-vozes da polícia, secretários de segurança e representantes do governo justificaram a operação, explicaram seus objetivos e apresentaram os resultados parciais. As falas dos moradores, quando existiam, eram curtas, superficiais e frequentemente colocadas ao lado de declarações oficiais que deslegitimavam suas queixas. O governo aparece como agente racional, organizado, responsável e legítimo. O morador aparece como figura ocasional, emocional e presumivelmente parcial. A operação ganha narrativa institucional enquanto as violações de direitos dos moradores são tratadas como dano colateral.

A ausência de contraste crítico contribui para reforçar consensos que não são naturais, mas construídos. A cobertura, ao não questionar profundamente os métodos e consequências da operação, validaa ideia de que a violência estatal é um mal necessário. Quando a mídia escolhe ouvir mais quem dispara do que quem é alvejado, ela participa, ainda que de forma indireta, da manutenção de políticas que repetem fracassos históricos.

A mídia cobre essas operações há décadas. E cobre da mesma forma. Esse ciclo repetitivo ajuda a naturalizar a violência como prática administrativa. Nada muda porque a forma de contar nunca muda. A operação seguinte é tratada da mesma maneira que a anterior, como se fosse apenas mais uma entre tantas. O público, assim, passa a entender que esse tipo de ação faz parte da ordem natural das coisas. Quando a violência se repete sem indignação e sem aprofundamento, ela se normaliza. 

Por Fernanda Diniz e Natália Santos

Supervisão de Katrine Boaventura

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