“Minha maior luta dentro do rap tem sido abrir espaço para outras mulheres ocuparem esse cenário comigo”. Quase 20 anos após o início de sua trajetória no rap, Thabata Lorena faz jus às mulheres de sua família ao criar uma rede de apoio também matriarcal: “Quando entendi o tamanho dos obstáculos impostos às mulheres no rap, passei a me engajar muito mais para tentar mudar essa realidade”, afirma.
“Quero sair desse clichê limitante que traz a narrativa de pessoas pretas sempre baseada em dor e desgraça”, afirma Thabata. “Isso exclui todas as camadas de vivências positivas que nós temos e nos limita muito. O racismo estrutural existe e precisa ser combatido constantemente, óbvio. Mas quero poder falar, também, dos meus gostos, hobbies e quaisquer outras coisas que vão além do sofrimento ”, completa.
Além de musicista e empreendedora, Thabata Lorena é, também, mãe de Ébano, de 12 anos, e Leona, de 3 anos. Ébano e Leona. Nomes fortes, combinando com a personalidade de quem os escolheu.
É com letras poderosas e beats contagiantes que a rapper eterniza os ensinamentos que quer deixar de legado para seus filhos e para o cenário cultural brasileiro.

“Cresça, crie, contrarie
não se vicie, aprecie,
Não é porque tudo vai mal
que você tem que ser mal
Então dê o melhor,
seja o melhor,
a chave está em você
É só persistir, jamais desistir,
não importa onde esteja
Um diamante também brilha na lama”
-Trecho de Favela, do álbum Novidades Ancestrais, lançado em 2014
Raízes
Thabata nasceu em Imperatriz, cidade maranhense que fica a pouco mais de 629 km de São Luís, capital do estado. A iniciativa de deixar a vida no nordeste e vir para o “quadradinho” partiu do avô materno de Thabata que, encantado pelos “50 anos em 5”, plano de metas traçado pelo então presidente Juscelino Kubitschek, resolveu tentar as oportunidades em Brasília. Thabata Lorena estava com 14 anos quando sua mãe, Neuriene, resolveu seguir os passos do pai em busca de uma qualidade de vida melhor. Juntas, mãe e filha mudaram-se para Samambaia (DF).
Da mudança, surgiu uma proximidade maior com os primos, que haviam passado por um processo igual de migração para o Distrito Federal com suas mães, tias maternas de Thabata. Com o tempo, eles a introduziram ao skate. “Acabou sendo um movimento natural. Fui convertida ao rap pelo skate. Comecei a abrir mais a minha cabeça e apreciar a cultura underground”. Rindo, a rapper conta que, até então, escutava os sucessos de É o Tchan!, grupo de pagode baiano. “Sempre ouvi de tudo, mas foi com o rap que eu tive um encaixe e passei a realmente prestar atenção nas letras das músicas e entender a responsabilidade de ser preta, mãe e artista no Brasil”, diz Thabata. “Como as que vieram antes de mim e lutaram por justiça, quero continuar batalhando por espaço e melhor qualidade de vida para o nosso povo”, afirma Thabata com determinação.
Aprendizados
“Apesar de todas as partes maravilhosas, o universo do rap, assim como o do skate, ainda é extremamente machista. É óbvio que o hip-hop é tocado pelo preconceito de gênero, uma vez que está inserido na sociedade”, desabafa. A artista conta que, durante sua adolescência, não combatia as posturas misóginas dos homens que ocupavam a cena local de rap. “O fato de eu ser muito bélica facilitou a minha aproximação dos homens. Eu sabia dialogar com aquela linguagem agressiva. Logo que entrei no universo do rap, comecei a frequentar batalhas e ter mais interações. Adotei comportamentos machistas e acabei reforçando estereótipos”, relata Thabata. “O espaço ocupado pelas mulheres era, geralmente, de casal com algum homem, era um papel secundário. Poucas de nós estavam lá por contra própria, sem paquerar nem ser par de alguém”.
Com o tempo, veio a maturidade. Aos 18 anos, Thabata virou uma chave. “Resolvi fazer o movimento contrário do que eu fazia até então e, em vez de falar mal das minas, começar a cobrar os caras que estavam sendo tóxicos e misóginos”, narra a artista. “Abri mão de alguns privilégios, parei de compactuar com as posturas masculinas e intolerantes que vinham de vários homens. Comecei a focar mais em como ajudar as outras mulheres que estavam com mais dificuldades que eu para se consolidarem no rap local”, explica Thabata.
Atualmente, a artista utiliza sua voz e suas redes sociais como ferramenta de mudança social.
Criando a próxima geração

Sobre os desafios de criar um menino em uma sociedade ainda patriarcal, Thabata Lorena conta que a desconstrução é constante: “A partir do momento que você coloca seu filho na escola, ele está exposto a todas as noções externas do que é ser homem, de como ele precisa sentir cada coisa e como deve se portar”. A rapper afirma que sabe exatamente o que quer para a criação de Ébano e reforça o quão importante é deixar a porta de diálogo entre eles o mais aberta possível. “Ele é um homem muito sensível. É extremamente cuidadoso comigo, a gente conversa muito”, pontua Thabata com orgulho. “E eu pretendo estimular essa sensibilidade nele sempre”, reitera. “Ele tá aqui dizendo que me ama”, acrescenta a rapper, rindo. Responde com um “também te amo, filho”. Pede para ele terminar de arrumar as coisas e volta a atenção para nossa entrevista, explicando que, enquanto conversamos, ela e Ébano estão limpando a casa.
Apesar da segurança que a rapper sentiu ao ter seu primeiro filho, as responsabilidades de ter uma filha menina a impactaram de forma diferente. Quando Leona chegou ao mundo, Thabata diz ter sentido muito medo. “Tenho casca grossa, sempre senti que sabia me proteger, mesmo sendo vista como presa pela sociedade. Com o Ébano, esse papel não me assustou tanto porque eu sabia que aguentava o tranco. Agora, em relação à Leona, sinto um receio muito grande. Imaginar minha filha nessa posição de vulnerabilidade perante uma sociedade machista é aterrorizante”, Thabata narra. “Óbvio que o fato de meninas serem abusadas não anula os assédios cometidos contra meninos. Criei o Ébano com prevenção ao abuso sexual. Mas com a Leona me bateu um pânico de ter quase certeza de que ela vai sofrer algum assédio. Carregar essa bagagem é muito pesado”, desabafa.
Segundo a artista, “as personalidades de Ébano e Leona são opostas como yin-yang”. Acrescenta, ainda, que “Ébano é naturalmente calmo, contemplativo. Quando pequeno, ele ficava no meu colo por horas, tranquilamente. Ébano gosta de conversar com gente idosa, é manso, muito na dele”, comenta Thabata. “Já a Leona, é ligada no 770, não para quieta, é muito curiosa com tudo. Corre dentro de mato, pula em água de rio quando a gente viaja, faz de tudo”, conta a rapper. “Isso aumenta um pouco também meu receio de como vai ser a trajetória dela em um mundo ainda dominado por homens”, confidencia a cantora.
Contudo, a relação de Thabata com sua filha Leona é muito mais profunda do que os temores trazidos por sua trajetória como mulher preta. “Ela vai comigo aonde eu for. Pra longe do fetiche de super mulher, tocar com ela é foda, cansa braços e costas. Apesar disso, sei que o lugar da minha filha é perto de mim”, descreve a artista em suas redes sociais.
Orgulho e preconceito

“Preta, cê vai alisar pra quê?
Deixe seu cabelo aparecer
Até porque, pelo traço
Pela cor já dá pra ver
O sarará que você tanto tenta esconder
Trecho de Alisar Pra Quê?, do álbum Novidades Ancestrais
Com versos poderosos, Thabata traz a música “Alisar Pra Quê?”, hit composto por ela em 2004. Por todo o simbolismo e importância presentes, Thabata conta que a canção já foi alterada algumas vezes, passando por versões de reggae e MPB. “ ‘Alisar Pra Quê?’ faz elogio à estética, ao corpo, à cultura, aos traços e valores pretos”, ressalta. “Em uma sociedade estruturalmente racista, ter referências de mulheres pretas de sucesso que apoiam e exaltam a cultura negra é fundamental”, complementa Thabata.
Em suas redes sociais, a rapper faz questão de fomentar diálogos sobre cor, ancestralidade e pertencimento. “Já procurou saber como apoiar uma mulher preta nos corres e sonhos dela?”, pondera Thabata em um de seus posts. Além dos textos marcantes que compartilha em seu perfil no Instagram, Thabata Lorena também faz diversas lives, em que convida outras mulheres pretas para dialogarem sobre raça, gênero e pertencimento. São levantados temas como Mulheres no Rap; Empreendedorismo e Quebrada; a Arte e Maternidade e Mulherismo Africano.
Rap e maternidade
Além de querer deixar para seus filhos relatos completos e ricos sobre vivências de pessoas pretas, Thabata relata que muito de sua percepção sobre representatividade foi alterada ao se tornar mãe. “Minha crianças me ajudaram a perceber a importância de contar experiências positivas, também. Preciso estar desarmada ao criar músicas para eles. A canção que compus para o Ébano, por exemplo, fala de orgulho, de parceria, de companheirismo e pertencimento. Vem de um lugar muito mais brando e alegre do que algumas músicas que já lancei anteriormente”, elabora a rapper. “Meu próximo disco tem um clima de quatro da tarde no parque. É uma pegada mais leve”, acrescenta empolgada. “Tenho muito orgulho do meu passado de resistência e luta mas, hoje em dia, eu quero mais viver do que sobreviver”.
Usar o afeto e a compreensão para transmitir a seus filhos os ensinamentos que adquiriu ao longo de sua trajetória é uma das metas de Thabata Lorena. “Sou uma ulher preta e bissexual. Sei o que é sentir peixe fora d’água e não quero isso para meus filhos – nem para ninguém. Ébano e Leona têm muito a me ensinar. Desde que virei mãe, tenho percebido o quanto a maternagem é uma troca, uma via de mão dupla. Nem tudo precisa ser feito do meu jeito. Minha intenção é transmitir para meus filhos a segurança de que tá tudo bem eles fazerem as coisas do jeito deles. A gente tá aqui pra aprender um com o outro e crescer junto”, diz Thabata.

Conquistas
Como fruto de seu trabalho árduo, Thabata Lorena tem uma mala cheia de histórias para contar. Em 2019, participou do Festival Latinidades, maior encontro de mulheres negras da América Latina. A artista foi uma das debatedoras da mesa de conversa Em Defesa dos Nossos Direitos: trânsitos e permanências das vidas negras, um dos eventos na programação do festival.
Em 2020, pouco antes de instaurar-se no Brasil o caos da pandemia do covid-19, Thabata organizou para o Carnaval brasiliense o Bloco Dona Imperatriz, homônimo do projeto de apoio à rappers do Distrito Federal. Ambos são uma homenagem à cidade natal da artista.
Em maio de 2021, a cantora lançou o Dona Imperatriz, projeto que apoia mulheres a seguirem seus sonhos no mundo do hip-hop e do rap. Através de workshops e oficinas com diversos temas, como Economia Criativa e Mercados Possíveis, ministrada pela ativista e empreendedora Wemmia Anita, a artista ajuda a capacitar artistas profissionalmente. “Quero investir intelectualmente na carreira de minas periféricas”, conta a rapper. O projeto Dona Imperatriz, financiado pela Secretaria de Cultura do Distrito Federal, selecionou oito artistas locais para serem “amadrinhadas”. Ediá, Gabi Kashuu, Lady B, Lis Martins, Mc Debrete, Medro Mesquita, Odara e Prethaís foram as escolhidas pelo programa para receberem apoio técnico e financeiro.
Para o próximo ano, promete lançar o single Ébano, composto para seu filho, e um novo álbum para celebrar a pluralidade da música brasileira, segundo ela. “Um EP com muita batida animada e letra pra cima, pegando um pouquinho de vários cantos do Brasil”, brinca a artista. “E quero compor algo para Leona, registrar nossas trocas na música”, completou. Me despedi de Thabata comentando brevemente sobre a minha vida acadêmica. Ela respondeu animada, dizendo que fica feliz por mim e que “ver mulheres LGBTQ moldando sua própria trajetória, estudando e se formando no ensino superior é uma conquista gigantesca”. Por fim, me parabenizou e deu uma risada contagiante, que ressoou na minha cabeça pelo resto do dia.
Por Vitória Freire
Supervisão de Luiz Cláudio Ferreira