Ao chover, eles não têm onde se abrigar. Enquanto as tesourinhas alagam, as caixas de papelão usadas como o teto ficam encharcadas. As paredes dos barracos são lonas ou sacos de lixo que podem ser levados pelos ventos fortes. No período da seca, o plástico esquenta e abafa o espaço em que moram. De acordo com a Secretaria de Desenvolvimento e Social, 2,5 mil pessoas vivem nas ruas na capital que, a cada abril, faz aniversário. Nos 56 anos de Brasília, esses moradores já seriam motivos que a impediria de comemorar. Eles estão embaixo dos pilotis das quadras e dos blocos da capital do país, mas não são vistos. Eles estão nos gramados dos parques; deitados em frente aos monumentos tombados. E eles também tombaram, caídos e invisíveis aos moradores. Conheça histórias de pessoas que passam fome e frio nas ruas da cidade com a maior renda per capita do país.
Leoberto Pereira tem a mesma idade de Brasília. Com 56 anos, ele relembra que ainda jovem tinha um futuro promissor. Ele se formou na faculdade, morou nos Estados Unidos por quatro anos. Era casado, tem dois filhos e dois netos. Na cidade que viu levantar poeira, conheceu outro tipo de pó. Viciado em cocaína, Leoberto também já foi preso por tráfico de drogas. Morador de rua, ele não tem mais contato com a esposa e com os filhos. A família mais próxima se resume aos pais, que, segundo Leoberto, a relação é conturbada. “Eu vou em casa de vez em quando, para tomar um banho, mas acontece que eu sou muito julgado. Por isso que eu prefiro a rua. Nela eu tenho o que preciso, não sou julgado por ninguém”.
Para Leoberto, o consumo de drogas o destruiu e ainda apresenta efeitos. Ele contou que, na noite anterior a entrevista, tinha inalado mais da droga branca. Leoberto afirmou que já tentou se livrar do vício, foi em busca de assistência para dependentes químicos no Centro de Atenção Psicossocial, Caps. “Eu tento me livrar dela, mas até hoje não consegui arranjar algum auxílio para diminuir o consumo. Eu me sinto destituído no dia seguinte, que bate umas ‘ressaca’, não gosto nem de ver porque sei que vai me fazer mal”, concluiu.
Sem esperança
Magali Silva, de 56 anos, veio para Brasília com a expectativa de melhorar de vida. Ela pretendia trabalhar na capital. Sonhos que foram deixados para trás. Magali não conta a história de vida, não acha importante que saibam que é. “Se eu contar minha história não vai adiantar nada. O que eu faço é pedir uma ajuda, se eu precisar de alguma coisa eu te falo”.
Magali entrou para a porta da rua na surdina, ao tentar escoltar o filho. O rapaz já foi preso três vezes por tráfico de drogas. Com a prisão do filho, conta que ficou devastada. Ela teria ido buscar por um rumo nas ruas, tentado ajudar, mas repetiu os passos do jovem. “Eu já cansei de tentar ajudar ele, minha família mesmo está na rua. A gente fica junto, dorme e se ajuda. Prefiro ficar com eles.”
Por ironia, hoje, ela também comercializa entorpecentes. É do tráfico que tira o dinheiro para comer. Para completar os trocados do dia a dia, guarda carros no Setor Bancário Sul. É na área central de Brasília que ela dorme. Em frente a bancos, ela vive sem renda. Dos estacionamentos lotados, ela tenta se movimentar, mas não conta detalhes da história que viveu. Com a mesma idade de Brasília, ela é só mais uma no Distrito Federal que veio em busca de uma vida melhor, foi parar nas ruas para tirar o filho. Hoje, ela se acomoda com a sombra de espaços públicos e é assombrada pelo passado.
Sonhadora
“Consegui virar travesti, graças a Deus e estou adorando Brasília, não tem lugar melhor para viver. Não conheço muita coisa ainda” afirma Rafaela Souza, de 21 anos. Ela está na capital há apenas um mês. Rafaela veio do Ceará para realizar um sonho e se realizar. Em Brasília, fez cirurgia para a mudança de sexo e, nas ruas, conta que recebeu a aceitação das pessoas.
São as pessoas em situação de vulnerabilidade que acolhem Rafaela. A jovem diz que se sente protegida para dormir perto delas. Nas duas décadas de vida, já passou por momentos que deixaram marcas. Com um mês na capital já aprendeu que a placa de “bem-vindo a Brasília” não é escrita para todos. “Eu já fiz de tudo um pouco, já me prostitui, já dancei em boates, mas vi que aquilo não era o melhor pra mim e saí. As pessoas daqui acham que a gente é lixo, por isso prefiro morar na rua, que me tratam bem independente e tudo.”
De mãos dadas
Nas ruas, conheceram-se. Depois disso, encontraram a salvação um no outro. Rompendo barreiras do preconceito. Os dois não têm a mesma idade nem é mesmo aproximada; Keli Souza está com 31 anos e Ricardo Souza, com 23. Mas esse não é principal motivo para a discriminação. Viciada em drogas, Keli se prostituía para comprar os entorpecentes. Moradores de rua, já estão “acostumados” com preconceitos e seguem de mãos dadas pelas ruas de Brasília.
A vida de Keli apresentava dificuldades desde a infância. A partir dos nove anos, aprendeu a viver sem um teto e no relento das madrugadas de Brasília.Com o passar do tempo, ela encontrou a sua cara metade. Um rapaz mais novo que a fez sair dessa vida.
Para ela, Ricardo é um anjo, um príncipe. Já pelo nome, que significa Príncipe Corajoso. Sem temer, a “alteza” das ruas trata Keli como uma rainha. “Se não fosse por ele, eu acho que eu estaria sofrendo muito, ou até morte. Eu me prostituí desde nova, tudo para usar o dinheiro para comprar crack, com esse minha opção, eu engravidei e tive quatro filhos, que moram com alguns familiares meus.”
O herói de Keli não chegou em um cavalo branco alado, não lhe trouxe uma sapatinho de cristal. Mas o beijo a fez despertar do efeito das drogas. Como se portasse uma espada de cavaleiro, cortou a pedra. Mas os caminhos de Ricardo também foram sobre pedras. Não dá detalhes sobre a vida, mas conta que andou entre “más” companhias.
Para se afastar dessas pessoas, começou a frequentar a Escola Meninos e Meninas do Parque – uma escola para moradores de rua. A busca pelo conhecimento fez com que ele despertasse a curiosidade em saber sobre muitos assuntos. Ele entrou na escola, conheceu a mulher. Hoje, ele afirma que o quê tem se resume a esposa. “Ela é tudo pra mim. A gente se conheceu na situação da rua, a bela a gente se uniu e se fortaleceu. Não uso mais droga e agora eu estou estudando, nunca pensei que fosse gostar tanto disso. Vamos todos os dias buscar mais conhecimento”, completou Ricardo.
Os dois são mais do que um casal, são companheiros da vida. Eles realizam todas as atividades diárias juntos, desde ir atrás de uma refeição, ir à escola e vendem exemplares de uma revista cultural (Traços) para tirar o sustento. A vergonha de pedir um auxílio para outras pessoas nas avenidas do planalto central os fizeram trabalhar e assim vão levando a vida do jeito que podem. “Hoje em dia eu não preciso mais pedir dinheiro na rua, com o meu trabalho eu consigo me virar na vida. Estudando e trabalhando, tenho ficado cada vez mais longe das drogas” contou a vendedora.
Vovozona
Uma senhora em meio a 2,5 mil pessoas que vivem nas ruas. Criada no Piauí veio para Brasília a procura de uma vida melhor. Sem filha, sem parentes, apenas com força de vontade. Na vinda para a capital, um acidente de ônibus deixou sequelas. Com 57 anos, Edelzuita de Jesus, arranjou um novo meio de vida, uma nova família. Os colegas que a vida lhe deu a chamam de “vó”, com todo carinho do mundo.
A “vovozona” se sente bem com todos os novos “familiares”, agradece sempre, pois sempre a ajudam. A internet, mesmo que seja difícil para se conecta, lhe trouxe uma boa notícia. “Eu tenho família, mas não moro mais com ele já faz muito tempo. Esses dias vi minha filha pela Internet, junto à minha netinha e tenho muita saudade delas”, disse Edelzuita.
Ela segue a vida dela com mais esperança, em busca de encontrar sua filha de alguma maneira, para assim tentar sair dessa situação de rua. Sem dinheiro para tentar alguma alternativa de ir para sua terra natal e reviver o tempo perdido com sua filha e neta. “Quero agradecer a todos que participam dessa ajuda pra gente, que dão um alívio em tudo o que a gente passa na rua, que é difícil”, finalizou.
O músico
Brasília é a capital do rock. Revelando bandas no cenário musical como Legião Urabana e Capital Inicial, geram inspiração para músicos da capital. Davi Silva tirou do gosto por canções um motivo para seguir a vida. Aos sete anos de idade, já estava nas ruas do planalto central, o falecimento da mãe foi o estopim para a nova moradia.
Para fugir da dor, escondeu em lugar sem paredes e de frente para as calçadas. Como um teto tinha apenas o céu anil que colore Brasília nos períodos da seca. Se o céu é o mar de Brasília, como uma vez afirmou Lúcio Costa foi olhando para onde acredita estar a mãe que ele mergulhou. Para Davi, não é fácil deixar de ser um náufrago. “Tudo o que a gente passa nessa situação tem que ser levado pra sempre. Não importa o quanto você queira sair da rua, ela nunca vai sair de você”.
Ele sonha em ser músico. Canta pelas vias da capital, que aos tumultos, não ouve os agudos que emana. Mesmo assim não desiste. Davi participa de um grupo musical de Adora a Roda, no Clube do Choro. O espaço é palco para grandes apresentações em Brasília. No auditório, ele esquece que ao fechar as cortinas, o show acaba e volta para a porta da rua.
Vício
Morar nas ruas é viver em vulnerabilidade. Não há segurança. O acesso a drogas é fácil. O caso de Fabiana Aparecida, de 43 anos, foi por influências de pessoas que se envolveu com o crack. Ela tem cinco filhos e uma neta. Eles não moram com ela na rua. Ela afirma que prefere que eles estejam com os parentes para que não enfrentem os mesmos problemas pelo qual passa. “Hoje eu sou muito contente na rua, apesar de sentir muita saudade dos meus filhos e netos, é melhor pra eles”.
Como uma proteção aos filhos, a distância tem sido o melhor remédio. Apesar da saudade de todos os pequenos que gerou, ela tenta manter um vínculo, mesmo leve, para não deixar de se motivar a sair das drogas.
Com um novo estilo de vida, o de vendedora de revista cultural, passou a se sustentar e quem sabe, sair da situação de rua na capital federal.
“Hoje eu não me sinto bem usando a droga, não gosto nem que falem esse nome perto de mim. Estou me esforçando bastante para que um dia eu consiga voltar a ficar perto dos meus filhos de novo”, disse.
Cadeia e abandono
Marlon, de 36 anos, vivia em Taguatinga com mulher e filha. Resolveu ajudar um amigo, Joaquim, que estava passando por dificuldades financeiras e o abrigou dentro de casa. Um dia descobriu que o amigo tinha tentado violentar sexualmente a filha. Após uma discussão, matou Joaquim com 17 facadas na frente da família. A ex-mulher e a filha foram embora de Brasília.
Foi preso e condenado a mais de 59 anos de detenção. Passou 13 anos na Penitenciária da Papuda. Lá, viciou em crack e em cocaína. Quando saiu da cadeia, disse que foi abandonado por toda a família. Ele usou R$ 30 mil da venda da casa da família para sustentar o vício. Assim, virou morador de rua. “Pra não arriscar, a gente rouba dentro de casa, um caminho mais fácil”.
Passou a morar sob uma árvore na quadra 903 da Asa Sul. Marlon viu a esperança de vida renascer em um projeto que o tornou porta-voz da cultura. Ele vende uma revista para tentar sobreviver e se livrar das drogas. Mas não tem sido fácil. Nem todo o drama de vida o afastou dos sonhos. Quer fazer faculdade de pedagogia e ser professor.
“Quero poder ensinar pras crianças o caminho certo a seguir, poder mostrar que o mundo é difícil se a pessoa não for para o caminho certo. Se você souber construir o mundo, ele se torna maravilhoso no fim”.
Enquanto a vida não muda, ele vai diariamente ao Centro Pop de apoio (em frente à árvore em que ele tem vivido) para tomar banho, cortar o cabelo, comer e tentar retomar a vida.
Braço Direito
Existem pontos pela cidade e pelo entorno que são específicos para o atendimento de moradores de rua. Batizado de Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), recebe a população e fornece uma alimentação básica, um lanche e fornece o uso de banheiros para que todos possam lavar suas roupas e tomar um digno banho.
Um morador que frequenta o Centro POP é José Pereira da Silva, de 53 anos. Ele busca auxílio de alimentação e ainda faz atividades com o pessoal que frequenta a unidade da Asa Sul. José tem familiares no entorno, porém, também é mais um que vive na rua por opção.
“É complicado viver na rua, mas a gente acaba se acostumando e com as pessoas certas, eu até prefiro dormir em qualquer canto da cidade”, disse José.
A horta é o trabalho que ele mais gosta de fazer. Ajuda para que o espaço que frequenta esteja sempre bem cuidado. “Eu gosto muito de mexer com essa parte, Eu ajudo o pessoal com o que eu consigo fazer”, finaliza José.
Centralizado
Em meio às árvores da quadra 202 norte, é possível enxergar um colchão com cobertor vermelho xadrez engomado. Esta é a casa de Costinha, única referência que o homem diz ter sobre o nome. Durante o dia a dia corrido da comercial, onde pedestres cruzam as ruas a todo momento. O paraibano, de 42 anos, esconde-se debaixo do pedaço de tecido encontrado em um lixo dos prédios residenciais. Ele conta que é melhor se “esconder” quando o fluxo de pessoas é grande.
Conduzido por duas vezes até abrigos da cidade, Costinha afirma que a decisão de deixar os locais aos quais foi destinado surgiu por causa do vício. O problema para ele é o álcool. E este é o mesmo motivo que o fez sair de casa. Ele conta que aos 17 anos deixou a cidade onde morava no agreste da Paraíba. No município de Cuité, as condições de vida eram difíceis e a mãe, Maria Alexandrina, já falecida, o mandou procurar trabalho na cidade grande. “Me perdi”, diz o morador de rua ao acrescentar que “está acostumado” com a vida que leva.
“Quem está na rua entende a rua”.
Questionado sobre a violência a qual está exposto, Costinha parou para pensar durante alguns segundos. A resposta parecia engasgada. Até que relevou: entre os maiores medos está o “olhar torto” de quem passa por ali.
Veterana
Maria Antônia Fernandes da Silva tem 63 anos e está na rua há pelo menos 30. O tempo exato ela não soube precisar. Com problemas dentários e com a saúde debilitada, Maria conta que uma das maiores dificuldades está na hora de comer. Além das dores, falta força na arcada dentária para a mastigação.
Sem a maior parte dos dentes, a pronúncia das palavras também se torna difícil, lenta. Mesmo assim, a senhora magra com cabelos finos e grisalhos não deixa o sorriso de lado. E adora piadas. Enquanto tenta ganhar dinheiro olhando carros nas comerciais da Asa Norte – mesmo lugar que costuma escolher para dormir – Maria conversa com as pessoas que passam por ela. Puxa papo, comenta as roupas das mulheres e até elogia os homens.
“Que pão! Você viu? Na minha época a gente chamava os homens bonitos de pão”, contou. Nesse momento, parecia querer exercer papel de avó.
De acordo com ela, a maior saudade é das filhas. Maria Antônia contou que saiu da periferia de São Luís, no Maranhão, quando terminou o casamento com o pai das duas meninas. A ideia de vir até a capital federal estava ligada às melhores condições de emprego, mas ao chegar percebeu uma realidade diferente da que escutava quando em terras maranhenses.
“Não encontrei trabalho e também não consegui mais voltar para casa. Não tenho contato com minha família desde os 40 anos”, disse. Mesmo com todas as dificuldades, ao pedir para dona Maria descrever a vida em uma palavra, a escolha foi “esperança”. “Temos que ter esperança e acreditar que vamos acordar amanhã, né?”, indagou.
Os personagens não são os mesmos. As histórias são parecidas: exemplos como drogas, falta de oportunidade, busca de uma vida melhor. Viver na rua é mais difícil do que parece e nesse mês de abril, ainda temos 2,5 mil motivos para refletir se a cidade merece mesmo a parabenizar pelo seu aniversário, já que nem todos os brasilienses têm motivos para comemorar. Parabéns Brasília.
Por Felipe Oliveira e Victor Fernandes
Fotos: Íris Cruz