Zona Rural do Lago Oeste sofre com expansão urbana e mudanças climáticas e colocam em xeque o abastecimento de água do Distrito Federal
O produtor rural Arildo (Ari) Rodrigues vive no Lago Oeste há 13 anos. De maneira bem humorada, ele explicou que chegou à região em 2013 com a ideia de “vender pizza para o Lobo Guará”. Isso porque as pessoas próximas não acreditavam que abrir um restaurante com massas na “roça” era um investimento que garantiria um retorno financeiro suficiente para se viver.

Acontece que, no primeiro dia de funcionamento do Espaço Nave, às margens da DF 001, ele vendeu logo 10 pizzas. A expectativa era que fosse a metade.

Ari não pensa tão somente no lucro. Produzir a massa italiana nessa zona rural significa atentar-se aos processos agroecológicos que envolvem a plantação de hortaliças e vegetais, que fazem parte dos sabores de pizza que vende. Ele entende a sensibilidade da área em que vive. E procura, a cada dia, maneiras de preservar a biodiversidade local. Por isso, o empreendedor e agricultor está construindo uma agrofloresta e um parque agroecológico.
“Eu sempre fui de permacultura. Trabalhar com animais, ser humano e plantas”, esclareceu Ari.
Segundo o Instituto de Permacultura (Ipoema), a agrofloresta é uma forma de uso da terra na qual se resgata a maneira ancestral de cultivo, combinando espécies arbóreas, lenhosas como frutíferas ou madeireiras com cultivos agrícolas e/ou animais.
Ao mostrar suas terras, ele explica como dividiu as plantações e quais são os projetos. Andando como quem conhece cada centímetro daquela terra, Arildo se desculpa pela falta de fôlego, mas explica que o trabalho de ontem foi exaustivo.
“Para não gastar mais água do que necessário, uma das técnicas da agrofloresta é cobrir as plantações com folhas para diminuir o impacto do sol na terra”, mostrava ele, enquanto os trabalhadores prosseguiam com o manejo das produções.

Enquanto o mundo se move cada vez mais em direção à urbanização, as áreas rurais permanecem como os pilares silenciosos que sustentam nossas mesas.
Em 2023, Ari teme que a irregularidade climática e a expansão urbana para a zona norte de Brasília afetem diretamente a disponibilidade de água da região em que mora. Antes, o poço artesiano de 120 metros de profundidade era o suficiente para irrigação de sua plantação.

Hoje, o fracionamento irregular das chácaras e a falta de fiscalização dos órgãos responsáveis pela adequação dos lotes situados no Lago Oeste, promovem uma verdadeira “festa” de exploração dos recursos hídricos locais.
“O parque agroecológico foi o que mais sofreu com a falta de recursos hídricos e a seca exacerbada. A gente teve que abortar alguns processos, eu tirei algumas mandalas e alguns canteiros de plantação”. Ele explica que a base do espaço agroecológico foi dividida em 10 módulos, que incluem o desenvolvimento das hortaliças e para cultivo de árvores nativas do cerrado.
Somente este ano, por fatores de seca e falta d’água, o produtor teve um prejuízo de cerca de R$ 5 mil em hortaliças, verduras e frutas.
O coração da produção de alimentos
O Lago Oeste, localizado na Região Administrativa de Sobradinho II, é uma das áreas rurais mais importantes para a capital. Além de contribuir para o abastecimento de água dos mananciais, a região possui uma predileção pela produção agrícola sustentável.

Produtores locais cultivam uma variedade de produtos, incluindo hortaliças, frutas e grãos, usando técnicas que respeitam o meio ambiente e promovem a conservação do solo.
Marilza Speroto, vice-presidente da Associação de Produtores do Núcleo Rural Lago Oeste (Asproeste), afirma que a região é “a caixa d’água de Brasília”, já que possui posição estratégica para os aquíferos. E por isso, a agricultura não só fornece alimentos para a cidade, mas também desempenha um papel na manutenção da paisagem rural e na preservação do equilíbrio ecológico.
A própria Lei nº 548, que sancionou a criação do Núcleo Rural Lago Oeste em 1993, já previa o intuito da região. No artigo 2º, a Câmara Legislativa decretou que “terá por objetivo a produção de alimentos de alto valor nutritivo, destinados à complementação alimentar da população do Distrito Federal”.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as áreas que se enquadram na categoria rural compreendem 98,3% do território nacional e são responsáveis por grande parte da produção de alimentos que abastecem as cidades do país e além de suas fronteiras. No Distrito Federal, a concentração rural passa dos 75%. E essa singularidade brasileira reflete há anos na política externa sobre o meio ambiente e no combate à fome.
“Quentura insuportável”
O produtor rural José Francisco de Sousa, conhecido como Zé de Bié, trabalha na cooperativa Palmas, na rua 19 do Lago Oeste. Ele veio de Correntina (BA) a Brasília em meados da década de 1990.
Os extremos climáticos estão cada vez mais evidentes. Para o plantio e comercialização dos produtos orgânicos, José é taxativo: “Este (2023) foi o pior ano. Eu planto aqui já tem mais de 20 anos. Agora está faltando chuva e a quentura está insuportável”. São 3 mil metros de horta, e a produção inclui milho e mandioca, que se adaptam ao clima seco. “O que acontece é que você molha de manhã, e ao meio-dia parece que não molhou. E aí começa a praga né? Colho um mantimento murcho”.

A irregularidade entre os períodos de seca e chuva tornaram-se ainda mais imprevisíveis. O desenvolvimento e expansão da cidade, sem planejamento e em cumprimento com as leis de preservação do bioma do cerrado, apenas agravam a situação.
“Eu não estudei para plantar, eu nasci plantando. Então, a diferença é muito grande do que vinha fazendo, para esse ano. Só de levantar de manhã, pelo cantar dos pássaros, você já sabe que vai chover mais tarde. E agora não, até os passarinhos enganam a gente”.
José Francisco de Sousa
Zé de Bié, apenas em 2023, teve um prejuízo estimado em R$ 9 mil.
Para pequenos agricultores familiares como ele, a quantia é um fator crucial para o aumento das dívidas e, por isso, precisam recorrer ao empréstimo bancário.
Expansão urbana
A 22 km do centro de Brasília, o Núcleo Rural passa por obstáculos na preservação do meio ambiente e da produção local. O Lago Oeste enfrenta o avanço da cidade e, consequentemente, de interesses econômicos e imobiliários. A necessidade de reforçar a luta se dá com o Termo de Conciliação que veio à público em 25 de março de 2023.
Em 2022, a assinatura desse termo (nº 03/2022/CCAF/CGU/AGU-CSM) foi promovida pela Câmara de Mediação e de Conciliação da Administração Pública Federal. O Ministério Público Federal (MPF) relata em documento o repasse de terras da União para a Companhia Imobiliária de Brasília (Terracap).
Apesar do trâmite se encontrar em uma fase de solenidade, a preocupação é latente, já que as duas das maiores das fazendas, Buraco e Brocotó, que compõem o Núcleo, se encontram em áreas de elevada sensibilidade ambiental.
Raiz do problema
O Lago Oeste, informalmente, nasceu em 1987, quando foi criada a Associação dos Produtores Rurais (Asproeste). A entidade tem o objetivo de manter a região como área rural, a preservação ambiental e lutar pela regularização fundiária.
A associação representa politicamente a região assumindo ou participando diretamente das ações administrativas e sociais de responsabilidade do Governo do Distrito Federal (GDF).
A Asproeste reúne, ao menos, 300 associados. São mais de 1.200 chácaras entre as ruas 00 e 24 do Lago Oeste e uma população acima de 7 mil pessoas, segundo o presidente da Associação, Antônio Farias Veras.
Prestes a completar 37 anos de criação, o local, que passa de 3 mil hectares de zona habitada pelos chacareiros, sofre com a possibilidade de se tornar uma área urbana.
A mudança, segundo acreditam os produtores, deve acarretar impactos para além da periferia, tendo consequências para todo o ecossistema do cerrado. Até o fechamento desta reportagem, nenhum órgão oficial comentou a situação da região. Isso influencia diretamente no fornecimento de água para o Distrito Federal (DF), incluindo a elite do Plano Piloto.
Operando por meio da empresa pública criada por lei em 1972, o GDF delega à Terracap o objetivo de “execução, mediante remuneração, das atividades imobiliárias de interesse do Distrito Federal, compreendendo a utilização, aquisição, administração, disposição, incorporação, oneração ou alienação de bens”, aponta a página do órgão.
Futuro hídrico
O Lago Oeste é um verdadeiro corredor ecológico, situado entre unidades de proteção ambiental. Esse fator transforma a região em uma parte substancial do abastecimento hídrico da cidade, pois é no Parque Nacional de Brasília que se encontra a barragem de Santa Maria – responsável pelo fornecimento de 11% de água no DF em 2022, segundo a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb).

O sistema de captação de água Santa Maria/Torto/Bananal é responsável pelo suprimento de 29% do DF, segundo o Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio).
Para que esse abastecimento não seja prejudicado, a manutenção do Lago Oeste como zona rural é fundamental. A impermeabilização da terra com edificações de características urbanas impedem que a água penetre o solo e recarregue o lençol freático. O posicionamento estratégico da região, com um terreno inclinado, serve como escoador de água para irrigação do Parque Nacional.
Crédito: Documento técnico do PDOT/Seduh – Edição: Samuel Andrade
A escassez de água é um dos impactos mais evidentes das mudanças climáticas nas zonas rurais. A redução da precipitação e a seca prolongada afetam diretamente a irrigação e a produção de culturas, levando os agricultores a buscar soluções inovadoras para preservar os recursos hídricos.
Marilza fala que, no ano passado, perderam a plantação de milho em razão da falta de chuva e na chácara ainda não tinha sistema de irrigação. “Não dá para plantar só na expectativa de que a chuva vai vir. Se você irriga com a água que vem da bomba, você precisa de energia”, explica a vice-presidente. Isso encarece ainda mais os produtos até chegar na mesa do consumidor.
Projetada na década de 1950, Brasília foi construída em uma região de savana tropical e planejada em torno da preservação dos recursos naturais. Grande parte do abastecimento de água potável da cidade provém de mananciais localizados nos arredores da cidade, incluindo o Lago Paranoá e o Lago Oeste.
A produção agrícola sustentável é crucial para “a proteção dos mananciais e a garantia de que Brasília continue a receber água de alta qualidade”, como aponta a cientista ambiental e produtora Marina Speroto.

Marina ainda complementa que os mananciais desempenham um papel fundamental na vida cotidiana dos brasilienses. Eles fornecem água para consumo doméstico, irrigação de plantações e sustentam a vitalidade do Cerrado. No entanto, essas fontes de água estão sob constante pressão antrópica (do ser humano sobre a natureza).
Por isso, além da plantação na sua chácara, ela acha importante dar um sentido maior ao espaço. Para a produtora, transmitir conhecimento e deixar que crianças tenham acesso a esses espaços é fundamental. Permitir que o contato com a natureza seja feito para orientar a importância desse espaço é a construção de uma base próspera para a manutenção do Lago Oeste.

Sinais da crise
Os indicativos dessa crise datam de outros anos. Já em 2003, um estudo realizado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), alertava que havia a necessidade de ampliar a rede de monitoramento hidrológico do Distrito Federal.
No documento intitulado ‘Caracterização Preliminar dos Recursos Hídricos Superficiais da APA de Cafuringa, DF’, com análises sobre as chuvas, a vazão e a qualidade da água, a Embrapa finaliza com uma consideração que alerta para expansão desenfreada da capital.
Segundo o estudo, a exploração mineral e a ocupação humana são as potenciais fontes de poluição das águas da APA de Cafuringa: “Com o tempo, a tendência natural das águas próximas a grandes centros urbanos é de ampliação da influência humana e, se a falta de monitoramento persistir, os possíveis impactos ambientais só serão notados no momento em que a situação for crítica e, muitas vezes, irreversíveis”.
Sustentabilidade
As terras do Lago Oeste vêm sentindo a pressão da monocultura e da ocupação desordenada do espaço. O crescimento populacional de Brasília e a expansão urbana levantam preocupações sobre a preservação do ecossistema e a degradação do solo. O desenvolvimento imobiliário e a expansão da infraestrutura ameaçam a integridade da região e da produção alimentar, segundo os produtores entrevistados pela reportagem.
Além disso, as mudanças e os eventos climáticos extremos apresentam desafios adicionais. “Variações bruscas podem afetar a produção agrícola, tornando a necessidade de práticas sustentáveis ainda mais urgentes”, relata a climatologista Francis Lacerda.
Brasília enfrenta a complexa tarefa de equilibrar o crescimento urbano com a conservação de mananciais e a promoção da agricultura sustentável no Lago Oeste. A Asproeste e agricultores estão trabalhando juntos para desenvolver estratégias que garantam o uso responsável da terra e da água na região. Além disso, a conscientização sobre a importância da conservação e da agricultura sustentável cresce entre a população local, com habitantes optando, por exemplo, pelo manejo de agroflorestas. Como o Arildo e a Marina estão fazendo nas suas chácaras.
Urgente
A tensão para expandir áreas de cultivo muitas vezes resulta em desmatamento e degradação do solo, o que contribui para a perda de biodiversidade. Conforme a Francis Lacerda, o desaparecimento de habitats naturais e a destruição do Cerrado podem ter efeitos de longo prazo sobre a saúde de Brasília e da região do entorno. “É essencial reconhecer a importância das zonas rurais e tomar medidas eficazes para garantir que elas continuem a ser os guardiões da nossa segurança alimentar no futuro”, diz a vice-presidente Marilza Sperotto.
Ela entende que a luta silenciosa do Lago Oeste deve se tornar uma causa compartilhada por todos, pois a preservação dessa área é essencial não apenas para os habitantes do campo, mas para a sobrevivência dos brasilienses. O desafio de equilibrar o crescimento urbano com a conservação do meio ambiente e a promoção da agricultura sustentável é uma tarefa complexa, mas essencial.
“A gente está numa campanha de manter o Lago Oeste rural, para não perder esse recurso tão rico. Quem faz produção orgânica, com a falta de chuva e o excesso, tem uma despesa muito alta. O clima está muito instável”.
Marilza Speroto
Os produtores do Lago Oeste enfrentam uma jornada de conservação e sustentabilidade, à medida que buscam preservar seus recursos naturais e garantir um futuro próspero.
A vice-presidente da Asproeste pede ajuda dos brasilienses e declara: “Tem uma frente ampla trabalhando e fazendo a interlocução com os órgãos do governo, porque aqui não tem condições de ser urbano, aqui é como se fosse um corredor ecológico. O risco é grande e todos os moradores precisam entender esse risco. A gente vai lutar para manter rural!”
Para saber mais sobre esse assunto, confira o podcast Era da Ebulição Climática.
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Reportagem por Juliana Weizel e Otávio Mota