“Eu uso o celular só para receber pagamento pelo PIX, mas quando tem que digitar alguma coisa, eu peço ajuda porque não sei escrever. Fico perdida com as palavras que aparecem na tela”. O desabafo é de Ana Carolina Souza, 42 anos, vendedora ambulante, que lamenta a exclusão do dia a dia
Segundo o INAF 2024 (Indicador de Alfabetismo Funcional), 49% dos brasileiros com acesso à internet têm compreensão rudimentar de textos e dificuldades para realizar tarefas básicas no meio digital.
Em um país onde mais de 80% da população está conectada, a exclusão não é mais uma questão de acesso, mas de uso funcional da tecnologia. O problema atinge principalmente os mais pobres, os menos escolarizados e os mais velhos.

O problema que o sinal não resolve
Dados do INAF mostram que 95% dos analfabetos funcionais e a maioria daqueles com nível rudimentar não conseguem preencher um formulário digital, emitir um boleto, identificar golpes no WhatsApp ou navegar em menus de sites públicos.
Mesmo entre os alfabetizados funcionais, 63% têm desempenho médio ou baixo em tarefas digitais, mostrando que ter um diploma não garante autonomia virtual.
Recomeços
Auxiliar de serviços gerais, Carla Menezes da Silva, mãe solo de 28 anos de idade, saiu da escola aos 11 anos para ajudar a mãe e só recentemente voltou a estudar.
“Minha filha está aprendendo a ler, e eu não conseguia ajudar no dever de casa. Isso me doía muito”, emociona-se.
Depois de três meses no EJA (educação de jovens e adultos), já escreve bilhetes simples e reconhece as linhas de ônibus. “É uma liberdade que só quem já viveu sabe o valor que tem.”
Para Lucas Ferreira dos Santos, 34, o retorno à escola também foi um processo difícil. Ex-ajudante de pedreiro e hoje motorista por aplicativo, ele reconhece que a vergonha o atrasou.
“Sempre dizia que não tinha tempo, mas no fundo era vergonha de voltar a estudar com essa idade. Já perdi oportunidades por não saber escrever direito, até fui dispensado por errar em ficha de entrega”.
Hoje, o EJA reacende seus sonhos: “Quero tirar minha CNH categoria D, fazer um curso técnico e quem sabe abrir minha própria oficina.”
Já Márcia Aparecida Lima, 47 anos, passou anos escondendo seu analfabetismo. Camelô no centro de Brasília, evitava escrever sempre que podia.
“Dizia que estava com pressa, que minha letra era feia… Era tudo para esconder”.
Foi o incentivo da filha que a levou de volta à escola. “Hoje já escrevo recados para clientes e leio promoções no atacado. É como se eu tivesse nascido de novo.”
Armadilhas da exclusão
A vulnerabilidade digital não está apenas na falta de habilidade, mas no risco constante de golpes. O advogado especialista em direito do consumidor, Nauê Bernardo Pinheiro de Azevedo, alerta que links falsos e golpes via PIX são os mais comuns.
“Muitas pessoas acabam baixando aplicativos maliciosos sem saber. E as tentativas de golpes pelo PIX, com alguém se passando por outra pessoa, são cada vez mais frequentes.”
O pesquisador explica que, embora o Código de Defesa do Consumidor proteja aqueles que estejam em relações de consumo, essa proteção é limitada fora desse contexto.
“As empresas precisam garantir segurança, conscientização e canais eficientes para proteger os consumidores vulneráveis”.
Ele ainda ressalta que, em casos de golpe que solicitem informações pessoais, se a vítima fornecer a senha ou qualquer outro dado voluntariamente, pode perder o direito a indenização. “Por isso, o cuidado e a informação são essenciais.”
Para ele, campanhas de informação e suporte às famílias vulneráveis são o caminho para diminuir esses riscos.
Exclusão
Ana Carolina enfrenta a exclusão digital todos os dias. “Já recebi mensagem de número estranho pedindo dinheiro e não sabia o que fazer. Tive que pedir ajuda para minha filha porque sozinha não conseguiria.”
Ela aprendeu a usar o celular olhando a filha mexer, mas diz que não entende as letras e termos técnicos. “Queria que fosse mais fácil, com imagens grandes e instruções simples. Que alguém explicasse do jeito que eu entendo, sem precisar ler muito.”
Para Ana, dominar a internet poderia mudar sua vida: “Eu poderia receber dinheiro mais fácil, fazer compras mais barato e não depender de ninguém. Também ficaria menos com medo de ser enganada”.
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Por Maria Luiza Campelo e Hevellyn Cirqueira
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira