Em um fórum virtual, um usuário anuncia que vai tirar a própria vida, referindo-se a um ato que o fará ser “lembrado como herói”. O usuário agradece ao dono do site e aos demais frequentadores pelos conselhos e as armas fornecidas. A publicação na internet é feita em meio a outras com discursos racistas, misóginos, homofóbicos e alguns declaradamente neonazistas. Nenhum dos usuários possui qualquer forma de identificação, interagindo em completo anonimato. Uma semana depois, ocorre o massacre na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano (dia 13 de março), com 10 mortos ao todo. O usuário era um dos atiradores. O site se trata de um Imageboard ou Chan: comunidades virtuais em que os usuários conversam em total anonimato, sem qualquer forma de hierarquia ou identificação entre eles, salvo os administradores que se identificam por pseudônimos.
Dois dias depois, uma mesquita na Nova Zelândia foi invadida por um atirador armado com fuzis e escopetas. O massacre vitimou 50 muçulmanos, e o atirador filmava tudo com uma câmera na testa. O vídeo era exibido ao vivo em outro Chan (desta vez um internacional), recebendo comentários de apoio com declarações islamofóbicas em meio a outras publicações marcadas pelo discurso de ódio. Usuários dessas comunidades são chamados de channers.
Os fóruns descritos tratam-se dos sites Dogolachan (atualmente acessível apenas via Deepweb) e 4chan (que continua aberto, disponível na Surfaceweb). Os usuários não medem esforços para gerar obstáculos para qualquer um que tente rastrear sua origem, e os criadores dos portais os registram em servidores clandestinos para que não consigam identificá-los. Todo tipo de discurso é aceito, mas é o de ódio que predomina.

O massacre de Suzano não foi a primeira vez que um Chan é associado a uma ação criminosa. Em maio de 2018 a Polícia Federal prendeu Marcelo Mello, criador do fórum Dogolachan, onde eram disseminados discursos contra negros, mulheres, judeus, homossexuais e diversos outros grupos; além dos usuários serem fomentados a cometer diversos tipos de crime. O site permaneceu no ar, e foi o mesmo frequentado pelos atiradores. A administração foi transferida para outro membro desconhecido, que se identifica como DPR (sigla para seu pseudônimo Dread Pirate Roberts).
Também não foi a primeira vez que um Chan ganhou notabilidade no mundo. Durante as eleições presidenciais de 2016, os usuários do imageboard internacional 4chan ganharam destaque por apoiar intensivamente a campanha presidencial de Donald Trump e por sabotar a campanha “He will not divide us”, do ator pró-Hilary Shia LaBeouf.
Bola de neve
Os Chans não começaram como um ambiente de propagação do ódio. Os primeiros chans surgiram no início dos anos 2000, onde os usuários falavam de assuntos relacionados a cultura japonesa e cultura geek. Mas foi o anonimato que, junto ao enorme fluxo de informação, criou lentamente um ambiente onde todo discurso é aceito, inclusive e principalmente o discurso de ódio. “O anonimato causa efeitos interessantes na cabeça das pessoas”, afirma um ex usuário de imageboards que não quis se identificar.
Os usuários também não costumam entrar já como defensores do discurso de ódio. “O usuário acaba se transformando dentro do Chan. São pessoas normais, geralmente com algum problema de sociabilidade, e que acabam seduzidas pelo que lêem lá. Poucos entram lá racistas ou homofóbicos, a maioria se torna lá dentro”, disse o ex usuário.
Quando questionado sobre que tipo de comentários de ódio já testemunhou, o ex-channer afirma já ter visto de tudo. “Desde apologia a pedofilia a comentários falando que negros não merecem viver. Inclusive existe um termo lá dentro para se referir a mulheres: são chamadas de “depósitos de po***”. Apologia a estupros e a atentados também são comuns. Os usuários partem do princípio de que ninguém de fora do Chan vai ler o que foi dito, e por isso não se preocupam com as consequências do que disseram. Seria mais fácil perguntar que tipo de apologia ao ódio eu não li por lá”.
Sobre o que aconteceu em Suzano e na Nova Zelândia, o ex usuário disse o seguinte: “O perfil do channer (usuário dos chans) que é seduzido por esses discursos é de alguém afastado da sociedade. Essas pessoas têm mágoas, se sentem rejeitados, sentem raiva. Quando uma dessas pessoas quer fazer algo de ruim, os outros vão compartilhar seu conhecimento de como fazer isso, e fornecer insights que eles não teriam sozinhos. Outros vão fomentar o que foi proposto. Esse site que os atiradores frequentavam especificamente, o Dogolachan, é o mais tóxico de todos nesse aspecto aqui no Brasil. Outros chans possuem partes boas e ruins, mas esse só tem a parte ruim”.
Uma tribo urbana virtual
Ao longo de seus quase 20 anos de existência, os chans reuniram milhares de usuários pelo mundo, desenvolvendo uma cultura própria. Os channers desenvolveram formas próprias de escrita, vocabulários próprios e um dialeto próprio, chamado Chanspeak. Possuem formas próprias de se expressar e até mesmo mascotes. Isso reflete em seus discursos e seu comportamento dentro e fora da internet. “Você consegue identificar se alguém é channer ou não pelo jeito como ela fala, pelos seus gostos. Mais de uma vez eu identifiquei amigos meus que eram channers não por que me disseram, mas porque usaram palavras que são usadas por lá”, disse o ex usuário.
O ex usuário alerta que essa subcultura é fruto de um forte senso de comunidade presente nos chans, e que acaba moldando o pensamento de seus usuários. “Ficando muito tempo lá, os preconceitos entram em sua cabeça. Você não percebe, mas eles corroem sua cabeça se você tiver a mente fraca. As pessoas ficam tóxicas, ficam paranóicas. Eles falam coisas que não condizem com a realidade. Eu saí quando percebi que aquilo estava tirando o melhor de mim”.
Anonimato vedado pela lei
Segundo o advogado Christian Thomas Oncken (OAB-DF), a Constituição prevê a livre manifestação de pensamento, mas veda o anonimato. “Qualquer espaço onde não puder ser verificada a identidade é proibido de ser promovido”. Isso se aplica para os chans que tentam camuflar o endereço IP dos usuários, prática muito comum nos sites registrados em domínios da Deepweb.
O advogado ressalta também que o anonimato em si não configura crime, e manter um fórum anônimo na internet também não. Porém, caso qualquer crime seja realizado dentro do fórum ou caso o fórum esteja envolvido na realização de alguma prática criminosa, o veículo é responsabilizado como co-autor do crime. Christian cita o caso do app Secret, que foi proibido por uma ação judicial em 2014 de atuar no Brasil por permitir, através do anonimato, o linchamento virtual.
Registrar o registro do portal em um servidor estrangeiro também não tira a responsabilidade pelo que acontece no fórum. Oncken deu como exemplo o caso de Marcelo Mello, criador do Dogolachan, que tentou registrar seu site em servidores na Indonésia mas ainda assim respondeu pelos crimes cometidos em seu site.
Denunciando crimes virtuais
Quando questionado sobre o que o usuário deve fazer ao testemunhar um crime virtual- independente se dentro ou fora de um chan, Christian informou tanto o procedimento que pode ser realizado para uma denúncia por meios oficiais quando para quem queira denunciar para a ONG SaferNet, especializada em promover e defender os Direitos Humanos na internet brasileira.
O lado bom do anonimato
“Apesar de tudo, ainda há um lado bom nos chans. Tem muita coisa boa lá na verdade”, afirma o ex usuário. “O fluxo de informação que passa lá dentro é enorme, e existe um forte senso de comunidade. Você aprende muita coisa. Se precisa de ajuda em algo, basta chegar lá e perguntar como faz”.
Salvo em alguns chans que adotam posturas mais tóxicas e outros abertamente destinados a atividades criminosas encontrados na DeepWeb, a maior parte do que é publicado nos chans não se trata de discursos de ódio ou incitações criminosas. Os chans são divididos em Boards: páginas em que o usuário pode abordar tópicos pré-estabelecidos. A maioria possui uma Board principal, onde todo tipo de conteúdo é abordado, e outras para áreas específicas: discussões sobre filmes, história, tecnologia, trabalho, saúde, viagens e diversos outros assuntos de interesse dos usuários. “Nas boards auxiliares você aprende muita coisa. Tem muito o que se aproveitar nelas, os usuários se ajudam muito”.
O ex usuário não acredita em solução para os chans, não acha que o “lado bom” deles os transforme em um problema menor. Porém, acredita que novas plataformas parecidas, mas com uma moderação mais rígida e com ferramentas que tornem possível a filtragem do conteúdo nocivo seriam interessantes. “Esse grande fluxo de informação pode ser aproveitado em uma plataforma que quebre o conceito do chan e as tendências inclusas, mas que consiga preservar um certo grau de anonimato e o formato adotado”.
Por Lucas Neiva
Sob supervisão de Luiz Claudio Ferreira