Assédio moral: gravações, mesmo sem consentimento, podem servir de prova, diz jurista

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O assédio moral no trabalho integra uma realidade silenciosa, mas devastadora, que atinge milhares de profissionais no Brasil. A advogada trabalhista Maria Luiza de Lima alerta que mulheres jovens são as mais vulneráveis e que a prática, muitas vezes naturalizada, pode evoluir para situações ainda mais graves.

“Gravações feitas pela própria vítima, mesmo sem o consentimento do agressor, e mensagens de WhatsApp também são aceitas como prova judicial, especialmente em casos onde não há outra forma de demonstrar o ocorrido”, afirma.

Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região, em Brasília. Foto: Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Comportamentos abusivos, repetidos e intencionais, segundo a especialista, configuram esse tipo de violência. Ela explica como identificar os sinais, reunir provas e denunciar com segurança.

Em entrevista, a advogada também comenta a nova norma do governo federal que obriga empresas a cuidarem da saúde mental de seus funcionários.

Histórias de três mulheres que passaram por situações de assédio moral no ambiente de trabalho mostram que a prática é generalizada e está espalhada por todo o país.

Santa Catarina

Larissa*, de 32 anos, compartilha a experiência de assédio moral vivida no ambiente de trabalho durante dois anos em uma escola de informática numa cidade do interior catarinense. “No começo estava bom, mas depois foi ficando uma situação que não dava mais. Ou eu continuava lá ou eu saía e ia viver”, comenta sobre o ambiente imposto por seu antigo chefe.

A rotina se tornou insustentável, marcada por episódios de controle excessivo e invasão de privacidade.

Um dos momentos mais marcantes foi quando, mesmo debilitada por uma virose, precisou justificar ao patrão o motivo de tantas idas ao banheiro. Detalhe: ele nem estava no local no dia, mas acompanhava o trabalho de Larissa pelas câmeras.

“Ele me ligou perguntando por que eu estava indo tanto ao banheiro. Eu falei: ‘Olha, eu estou com virose e eu preciso ir no banheiro porque eu estou vomitando’”, relata a trabalhadora.

Larissa também relata que, na época, não percebia a gravidade da situação.

“Eu precisava do emprego, eu precisava do salário e acabei me sujeitando a algumas coisas que hoje em dia eu fico pensando: não, jamais vou passar por isso de novo.”

A percepção real sobre o que estava sofrendo veio apenas após deixar o emprego e encontrar um ambiente profissional mais saudável.

“Eu chorava muito. Chegava em casa chorava, chorava, chorava e eu não sabia o porquê. Mas provavelmente era por conta disso”, lembra a catarinense.

O abuso também era direcionado a outras funcionárias, em especial se fossem mulheres. “Ele sabia com quem ele podia fazer as coisas que fazia”, afirma.

Uma colega de trabalho chegou a alertá-la logo no início: “Ah, ele vai te deixar um pouco louca”, disse brincando, sem imaginar que sua fala se revelaria profética.

É outra vida

Hoje, Larissa trabalha em uma empresa onde se sente respeitada e reconhece a importância de estruturas de apoio como o setor de RH e canais seguros de denúncia. “É outra vida”, compara.

Para ela, é fundamental que as empresas contem com psicólogos, espaços de escuta e mais representatividade LGBTQIAPN+ nos quadros funcionais (ela própria é uma mulher lésbica).

“Acredito que isso é muito importante também. Às vezes a pessoa nem sabe, mas precisa de uma terapia.”

“Se acontecer uma vez, pode acontecer mais vezes e provavelmente vai. O importante é tentar sair, procurar algum outro emprego e se manter o mais longe possível dessa pessoa e desse local”, aconselha Larissa.

Foto produzida por Lourenço Cardoso/Agência Ceub

São Paulo

Maria Clara*, pedagoga de 30 anos, vive em Santo André/SP e trabalha como assistente de coordenação em um colégio. Ela é mais uma vítima do desgaste emocional e físico causado por um ambiente de trabalho que ultrapassa os limites do razoável.

“Comecei a perceber que talvez se enquadraria num assédio moral quando a vida profissional estava ultrapassando os limites, atrapalhando a minha vida pessoal”, relata.

Maria Clara descreve um cenário de sobrecarga constante e invasão de privacidade. Recebe mensagens de trabalho às 2h da manhã, usa o próprio celular para atividades profissionais e se vê obrigada a lidar com demandas em horários de descanso.

“Mesmo que ela [a chefe] diga que não precisa responder, a mensagem está lá. Você está num programa com a família, com amigos, e já foi incomodada por aquilo”, desabafa, numa dinâmica que gera ansiedade e compromete sua saúde.

“Comecei a ter picos de estresse que se manifestavam em dores de cabeça e exaustão extrema. Eu chegava em casa e não tinha vontade de fazer mais nada.”

Apesar do esgotamento, Maria Clara afirma que gosta do que faz e das ideias que propõe à escola. No entanto, reconhece os limites dessa dedicação.

“No ano passado, deixei de cuidar da minha saúde. Hoje, com ajuda da terapia, priorizo isso. Deixo claro que, se preciso fazer exames, eu vou. Não fico mais com aquele pensamento de ‘não posso faltar’.”

Na escola, não há canais formais de denúncia ou apoio emocional.

“A abertura com os diretores depende muito da relação pessoal. Eu consigo falar, mas ela nunca vai assumir que errou. E tem colegas que nem essa abertura têm.”

A ausência de um canal seguro, segundo ela, prejudica o ambiente e impede melhorias, pois os funcionários não têm com quem fazer reclamações e denúncias justas.

Quando questionada sobre o impacto do assédio em mulheres jovens, Maria Clara é enfática:

“Homens no poder acham que podem gritar, diminuir, que podem falar o que quiser. Mas nossa idade ou gênero não define nossa capacidade de exercer o trabalho.”

Ela propõe medidas simples e urgentes.

“Um canal seguro, mesmo que não seja de denúncia formal, mas apenas de escuta. Um espaço com um psicólogo onde a pessoa possa dizer: ‘Eu estou estafada, preciso colocar isso para fora’.”

Por fim, Maria Clara deixa um conselho a quem vive situações semelhantes.

“Se puder, procure novos horizontes. Às vezes, a mudança que você teme é justamente o que vai te fazer bem. E faça terapia. Ali, você pode ser quem você é, falar tudo que sente. A terapia me ajudou e ainda me ajuda a levar esse trabalho enquanto estou lá.”

Distrito Federal

Renata*, advogada de 27 anos, relembra com lucidez e firmeza a experiência de assédio moral que viveu como estagiária num órgão público vinculado ao Poder Judiciário, onde trabalhou durante quase dois anos, quando estava iniciando sua vida profissional.

Apesar de se destacar pela dedicação e pelo bom desempenho, foi alvo de uma conduta hostil por parte da chefe de gabinete — uma mulher que, segundo Renata, já havia sido alvo de outras denúncias por comportamentos semelhantes.

O episódio mais marcante aconteceu quando Renata tentou, com antecedência, obter a assinatura da chefe para uma simples autorização de férias. Após semanas de lembretes respeitosos e silenciosos, recebeu, no último dia, um e-mail que a humilhou publicamente.

“Ela assinou a folha e mandou para a diretora do RH me copiando no e-mail e escreveu: Renata é extremamente ansiosa, está me deixando de cabelos brancos. Não sei como ela vai conseguir lidar no ambiente profissional com tamanha ansiedade’”, relatou.

A situação teve impacto profundo em sua autoestima. “Passei a duvidar do meu potencial. Aquela característica — a ansiedade — que nunca tinha me definido antes, passou a pesar como um rótulo profissional. Aquilo me afetou muito.”

Mesmo jovem, Renata reagiu com maturidade: “Falei para ela que me senti exposta e humilhada, que ela não poderia tratar outras pessoas da mesma forma. E disse: ‘Eu poderia te denunciar por assédio moral, mas meu objetivo é que você aprenda e não repita isso com ninguém’.” A resposta da chefe? “Ela riu e disse: ‘Você tá me desafiando? Pode me denunciar. Eu não tenho medo’.”

A experiência, segundo Renata, era recorrente no gabinete. “Outras pessoas também já tinham passado por isso. Quando fui me desligar, a diretora do RH disse: ‘Você não é a primeira, nem a segunda, nem a terceira’.”

Apesar de haver um setor de recursos humanos, Renata não via eficácia no encaminhamento de denúncias. “Você até podia falar, mas nada acontecia. A sensação era de impunidade.”

Renata destaca a vulnerabilidade extra por ser mulher e jovem no ambiente profissional: “Já ouvi tantas vezes: ‘Você é nova demais, tem muito o que aprender’. Mas quando pergunto: ‘Fora minha idade, o que está errado?’, nunca tem resposta. É uma crítica vazia, usada para deslegitimar.”

Hoje, em um ambiente mais acolhedor, tendo inclusive uma mulher jovem como chefe, Renata valoriza a segurança de poder errar e ser ouvida: “Disse à minha chefe atual: ‘Aqui eu me sinto segura até para errar. Isso muda tudo’.”

Ela defende políticas estruturadas para enfrentar o assédio moral, como canais de denúncia anônimos com protocolos claros de ação. “Não pode ser subjetivo. O subjetivo protege quem está no poder”, alerta. E deixa um recado direto para quem enfrenta situações semelhantes: “Se posicione. Enfrentar é difícil, mas é libertador. Quando você se cala, carrega mágoas. Quando se posiciona, cresce.”

Assédio moral

A advogada trabalhista Maria Luiza de Lima, especialista em Direito do Trabalho com foco em empresas, oferece uma visão clara e prática sobre o assédio moral no ambiente profissional.

De acordo com a especialista, o assédio moral é um processo contínuo de violência psicológica no trabalho, geralmente praticado por um superior hierárquico, embora possa ocorrer também entre colegas.

“É caracterizado por condutas abusivas, repetidas e intencionais, com o objetivo de causar abalo emocional à vítima, trazendo danos diversos, como depressão e ansiedade”, explica.

A profissional enfatiza que mulheres jovens são especialmente vulneráveis a esse tipo de violência. “Muitas vezes, por falta de maturidade emocional e independência financeira, elas não conseguem reagir, o que torna os danos ainda piores.”

Segundo ela, em alguns casos, o assédio moral pode evoluir para assédio sexual: “O agressor testa a vítima e, percebendo que ela não reage, pode intensificar as ações.”

Entre os setores mais propensos ao problema, a especialista aponta a iniciativa privada, “onde há menos fiscalização e tudo ocorre por baixo dos panos”.

Para quem sofre assédio moral, o primeiro passo é manter a calma e reunir provas. “A vítima deve anotar datas, horários, nomes e circunstâncias. Provas como e-mails, mensagens e gravações são válidas e essenciais.” Ela ressalta ainda a importância das testemunhas e orienta a fazer denúncias formais ao RH ou superiores hierárquicos.

Para quem teme ser demitido após uma denúncia, a advogada tranquiliza: “Com provas, é possível pedir a rescisão indireta do contrato, mantendo todos os direitos trabalhistas e ainda pleitear indenização por danos morais.” Os valores indenizatórios variam conforme a gravidade, mas, segundo ela, “quando o juiz reconhece o dano, a reparação costuma ser significativa”.

Legislação

Maria Luiza também destaca a recente atualização da Norma Regulamentadora NR-01 GRO, feita pelo Ministério do Trabalho e Emprego, tornando obrigatória a gestão dos riscos psicossociais nas empresas a partir de maio de 2025.

“Agora, além dos riscos físicos, químicos, biológicos, acidentais e ergonômicos, há também a necessidade de conter os riscos psicossociais relacionados ao ambiente de trabalho.”

A ausência de políticas internas e canais de denúncia pode ser usada contra a empresa em caso de ação judicial. “Sem normas, vira uma bagunça. A empresa que não oferece um ambiente digno e seguro, arca com as consequências.”

Segundo ela, o desconhecimento da lei, o medo da retaliação e a falta de confiança nos canais de denúncia são grandes obstáculos para as vítimas.

A advogada aconselha que a vítima deve procurar o Ministério Público do Trabalho e um advogado trabalhista. Em casos mais graves, como agressões físicas ou sexuais, também deve denunciar à polícia.

“A Justiça do Trabalho tem evoluído, e quando há provas consistentes, o trabalhador consegue justiça. O mais importante é ter coragem para se posicionar e buscar seus direitos.”

* Os nomes das trabalhadoras foram alterados a pedido das próprias entrevistadas.

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Por Danilo Lucena

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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