Trabalhadores da noite relatam privação de sono e riscos diários

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Enquanto os moradores de Brasília dormem, profissionais que são invisibilizados seguem firmes em suas jornadas. Trabalhadores da noite mantêm a cidade funcionando. Eles limpam hospitais, garantem a segurança dos prédios e conduzem ônibus madrugada adentro. São figuras essenciais, mas cujos esforços, quase nunca, são reconhecidos.

Limpeza noturna

Das 21h às 5h, Maria das Dores Lima percorre os corredores de um hospital particular, enfrentando o peso físico e emocional de uma jornada que não cessa.

“O corpo não acostuma. Mesmo depois de anos, ainda sinto o peso”, diz ela, enquanto se prepara para mais uma noite de trabalho.

O medo também faz parte de sua rotina, especialmente no caminho de volta para casa.

“Tem o escuro, a insegurança. A gente nunca sabe o que pode acontecer.”

Além disso, a privação de sono se torna uma constante. “Durmo pouco, umas quatro ou cinco horas. Tenho uma filha de 19 anos e cuido da minha mãe, que é idosa. Não tem jeito, é o que consegui fazer.”

A rotina que ela vive é exigente, mas Maria segue, como tantos outros trabalhadores da noite, sem esperar muito mais reconhecimento do que o seu próprio esforço diário.

Turno de silêncio e solidão

Os relatos se estendem para Anderson Soares que quando o relógio marca 19h já se prepara para mais uma longa noite.

Ele é segurança noturno em um prédio na Asa Norte, e o trabalho se estende por 12 horas, das 19h às 7h.

“Sou responsável por tudo: entrada, câmeras, ronda. Às vezes, é tão silencioso que chega a assustar”, diz ele, revelando como o silêncio e a solidão se tornam parte do cenário. “Tem hora que dá vontade de conversar com alguém e não tem ninguém. Já cochilei escondido no banheiro, só para descansar um pouco.”

“Nunca o sono é de verdade”

Seu descanso não é fácil. Durante o dia, o sono é interrompido por barulhos externos, telefonemas e uma sensação de desconexão com os outros.

“Nunca é um sono de verdade. O telefone toca, o vizinho faz barulho, minhas filhas pequenas quase não me veem. Isso dói”, desabafa

. Mesmo sendo a pessoa responsável pela segurança de um prédio inteiro, ele se vê invisível para muitos. “Acham que a gente só senta e olha. Não sabem o que acontece quando ninguém está vendo.”

Efeitos invisíveis de um turno invertido

Para a psicóloga Rosana Cibok, os efeitos do trabalho noturno são profundos. “A troca do dia pela noite desregula o ciclo biológico. Isso pode levar a distúrbios de humor, irritabilidade e sensação de desconexão social”, explica.

Mas o maior impacto, segundo ela, é o sentimento de desvalorização. “Quando a profissão não é reconhecida, o trabalhador tende a se sentir desvalorizado. A autoestima cai, e pode haver isolamento.”

Ela alerta, ainda, sobre o impacto nas pessoas que não têm escolha sobre seus horários de trabalho. “Quando não há opção, a pessoa entra em um ciclo de esgotamento contínuo. Dorme mal, se alimenta mal e sente que perdeu o controle sobre a própria vida.”

O peso da invisibilidade desses trabalhadores, muitas vezes, não é só físico, mas também psicológico.

Acordo cansado

Para Claudinei Martins a realidade é tão dura quando, assim que anoitece ele inicia seu turno, pegando no volante do ônibus que liga o centro da cidade a Ceilândia. Seu turno começa às 23h e vai até às 5h.

 “Sempre tem passageiro: enfermeira, vigilante, entregador. Gente que também virou a noite para fazer a cidade girar”, comenta. Mas, no caminho, o perigo não é raro. “Já fui assaltado duas vezes. Fora o cansaço, que às vezes é tanto que passo do ponto e nem vejo.”

Dormir durante o dia não resolve. “Acordo sempre cansado. Meus filhos pequenos até brincam dizendo que eu moro no ônibus”, diz, com um sorriso cansado.

E, como muitos de seus colegas, Claudinei sente a falta de reconhecimento. “Ninguém lembra que tem um motorista ali. Mas quando alguém agradece, isso muda tudo. Faz todo o esforço valer a pena.”

Legislação existe, mas a realidade pesa mais

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) reconhece o trabalho noturno como especial, garantindo um adicional de 20% sobre a hora diurna, mas a realidade vivida por esses profissionais frequentemente está distante da proteção legal.

“As jornadas noturnas exigem muito mais esforço, tanto físico quanto emocional. A legislação não é suficiente para cobrir o impacto que esses profissionais enfrentam”, observa Rosana.

Ela propõe uma mudança na forma como as políticas públicas tratam esses trabalhadores.

“É necessário investir em acolhimento psicológico nas empresas, campanhas de conscientização e uma revisão das leis com foco nesse público. Não podemos continuar ignorando os efeitos do trabalho noturno.”

“Quem cuida também precisa ser cuidado”

Maria se emociona ao recordar de um simples, mas significativo, gesto de reconhecimento: “Uma enfermeira me abraçou e disse, ‘obrigada por manter tudo limpo, é por sua causa que a gente trabalha em paz.’ Nunca esqueci isso.”

Para ela, aqueles momentos de agradecimento são raros, mas fazem toda a diferença.

Claudinei também guarda na memória um encontro especial. “Uma moça entrou no ônibus chorando, porque tinha perdido o avô. Conversamos durante a viagem toda. No final, ela disse que eu salvei a noite dela. Isso vale mais que qualquer salário.”

Por Maria Luiza Campelo
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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