(Sob inspiração dos versos de Maria da Vila Matilde, de Elza Soares)
Duas Marias, duas denúncias, um único objetivo. Maria Aparecida estava decidida. Ela ia denunciar. Perdida e sem rumo, seguiu direto para a delegacia. Pensou nos filhos. Eles não mereciam sofrer mais. Nem ela. Não tinha dinheiro nem onde dormir, não tinha roupa e até a sandália precisou pedir emprestado. O seu único objetivo era denunciar. Chega de violência. Chega de tapas, chutes, empurrões, xingamentos. Chega. “Não tinha mais o que fazer. Dei parte dele. Fiquei sozinha esperando o fórum abrir para dar entrada na minha separação e assim eu fiz”. Tal qual Maria da Vila Matilde, música de Elza Soares, entregou o nome, explicou o endereço e na sua casa ele não entrou mais. E aí dele se aventurar.
No Distrito Federal, entre 2014 e 2023, houve mais de 46,5 mil notificações de violência contra a mulher, segundo dados da secretaria de Saúde local. E o ano passado foi um dos períodos mais violentos: 9,3 mil casos notificados. Esse número, uma média é de 4,6 mil notificações por ano e 387 ao mês, representa 12,9 ocorrências diárias. Não há estimativa de quanto pode ser o número de casos não notificados.
No caso de Maria Aparecida, o terror apareceu em mais um desses dias de cachaça de José Anastácio, o ex-marido dela. Ele chegou em casa por volta de 23h. Bêbado, pediu que a esposa preparasse uma comida. Ele queria carne, mas não tinha. “Eu disse que tinha ovo e dei o prato para ele e fui deitar”. Foi quando notou uma fumaça e um bêbado agitado. “Meu filho mais velho acordou gritando e pegou minha bolsa, abriu a porta e saiu pra casa da minha vizinha e eu fiquei desesperada pedindo socorro”. A casa estava em chamas.
Com ajuda dos vizinhos, o fogo se apaziguou. Mas era o fim. A casa estava destruída.
“Vi as telhas da minha casa explodindo, as paredes caindo e o fogo consumindo tudo. Por um tempo acho que apaguei e acordei com um bombeiro ao meu lado e meus filhos chorando. Olhei no carro do bombeiro e lá estava ele rindo para mim como se nada tivesse acontecido. Até hoje, isso me dói muito”.
Foi aí que Maria Aparecida, hoje com 60 anos, decidiu finalmente dar um basta nas agressões e denunciar.
Passado
Maria Aparecida, ou Cida como gosta de ser chamada, aos 17 anos, decidiu acreditar no que lhe parecia ser amor. Num dia de carnaval, indo ver desfile de rua, lá estava ele rodeando até envolvê-la com belas palavras. Namoraram por quatro meses até resolverem se casar. “Foi aí que dei o passo mais errado da minha vida, o de não ouvir minha mãe. Ela sempre me alertava sobre o comportamento dele. Bebia, sumia depois aparecia com pedidos de desculpas.”
Desde que Maria casou, sua vida se tornou um inferno. O homem que ela amava, que inclusive era policial, era o seu maior algoz. Aquele que deveria amar e cuidar, batia nela todos os dias. Ela chegou a pensar que a culpa era dela. Que ela não era exatamente o que ele queria. Que se fosse diferente, talvez não apanhasse. “Eu achava que não era o tipo de mulher que ele queria e que, por isso, não me amava”. De uma coisa ela estava certa, era que ele não a amava. Quem ama, não maltrata.
Apesar dos hábitos do marido, Cida escolheu continuar com o relacionamento. Até que engravidou do seu primeiro filho. No nono mês de gestação, o marido sumiu. Passados oito meses do nascimento do filho, José Anastácio, sem sobrenome, pois os pais não colocaram, reapareceu com mais pedidos de desculpas. Cida, por gostar dele e querer um lar, acabou cedendo. Foi assim que se iniciou novamente a saga de engravidar mais duas vezes e mudar de aluguel várias vezes com seus filhos. José, que costumava dormir fora de casa, quando chegava não falava nada. Quando falava, ficava agressivo a ponto de dar chutes e tapas na esposa.

Questionar já era motivo para xingamentos. Um atraso de meia hora após a saída do trabalho lhe rendia empurrões e surras que ficam evidentes por dias. “Quando isso acontecia, ele não me deixava entrar em casa. Tinha que pegar meus filhos e ir para a parada de ônibus e ir para a casa da minha mãe tarde da noite. Nem sandália eles colocavam no pé de tão assustados.”
Como num ciclo vicioso, no outro dia, ele retornava jurando arrependimento. Cida reatou e aceitou. “Foi pior. Ele não deixava mais eu dormir para ir ao trabalho. Bebia, ligava o som bem alto e eu ia trabalhar morta de cansada”.
Maria até pensava em denunciar, mas sentia pena. Pena, aquilo que seu marido nunca sentiu por ela. “Eu sentia pena e o tempo foi passando.” Maria Aparecida só resolveu ligar para o 180 quando perdeu a casa que tanto lutou para ter. Foi então que fez o homem se arrepender de levantar a mão para ela, como canta Elza.
Ciclo da violência
O ciclo da violência doméstica, identificado pela psicóloga Lenore Walker, revela uma sequência previsível e recorrente de comportamentos que mantém a vítima presa em um padrão contínuo de abuso. A primeira fase, conhecida como aumento da tensão, caracteriza-se pela irritabilidade notável do agressor, que reage desproporcionalmente a situações cotidianas. Durante esse período, a vítima se encontra sob pressão e se censura tentando apaziguar o agressor e evitar os comportamentos que o irritam. Na segunda é onde o abuso se torna físico, verbal, psicológico ou patrimonial. A vítima, muitas vezes paralisada pelo medo e confusão, pode se sentir impotente e insegura.
Na terceira fase, o falso arrependimento e comportamento carinhoso do agressor criam uma ilusão de mudança, fase intitulada como Lua de Mel. Neste estágio, o criminoso mostra remorso e tenta reconquistar a vítima, que, por sua vez, se sente pressionada a manter o relacionamento. Muitas vezes essa pressão pode vir por parte de amigos e familiares. Esse período de calma aparente cria a esperança de que as coisas irão melhorar e que o agressor mudará. No entanto, a tensão eventualmente retorna, reiniciando o ciclo de abusos.
Mudança de comportamento
Marcela Louise, 31 anos, viveu na pele o ciclo da violência. No início, seu namorado e futuro marido, Igor Galvão, era um rapaz quieto. Eles viviam um relacionamento tranquilo, como Cida Freitas, mãe de Marcela, costuma dizer. Mas após o nascimento da filha deles, ele mudou. Começou a ficar mais irritado. “Ele já partiu para um comportamento um pouco mais arredio. Ele se mostrou uma pessoa muito mais dominadora em relação a ela”, conta Cida.
Então, na segunda fase, o primeiro hematoma veio. Quem percebeu o olho roxo foi a irmã mais nova de Marcela que contou para a mãe. Cida levou Marcela ao IML e elas até chegaram a realizar o Boletim de Ocorrência contra Igor. Mas o caso foi arquivado, pois ela se recusou a fazer exame de corpo de delito. Ela desistiu. Eles reataram. Aí começou a terceira fase: a do falso arrependimento e das promessas vazias. “Eles reataram com a promessa de que a iam ser felizes, que não ia acontecer mais, porque foi uma coisa eventual”.
Não foi eventual. O ciclo da violência recomeçou. Marcela foi assassinada.
O fim
No dia 20 de maio de 2024, foi o fim para Marcela, aos 31 anos e com uma filha de 5. Com traumatismo craniano e oito costelas quebradas, além de outros ferimentos pelo corpo, a mulher foi levada pelo marido ao hospital, em Goiânia.

A 207,7 km dali, em Brasília, sua mãe recebe um telefonema do então genro, que não a ligava havia mais de dois anos. “Foi estranho, ele não me ligava pra nada. Não tínhamos uma boa relação pelo fato de eu nunca confiar na dinâmica dele”, conta Cida Freitas, arquiteta e mãe de Marcela.
Na chamada, o agressor, sempre muito rude e grosseiro com a esposa em determinadas situações, avisa que a companheira estava indo para o centro cirúrgico porque tinha levado um tombo ao limpar a casa. “Saí de Brasília às sete horas e cheguei lá por volta das onze horas da noite. E aí ele estava lá com os colegas e minha neta e no outro dia eu fui lá no hospital, na UTI para vê-la. E eu encontrei ela numa situação bem grave”, relembra.
Cida relata nunca ter acreditado na versão apresentada pelo agressor. “Eu sou dona de casa e mulher. Você vai se esforçar e um dia você vai passar um pano na casa, vai cair da sua própria altura e não vai ter o tanto de lesões que ela tinha”.
Igor Porto Galvão subjugou a inteligência não só da sogra, mas de uma equipe médica, profissionais habilitados para perceber que a versão apresentada do ocorrido não condizia com a verdade. Cida não se contentou com a história falha e mentirosa. Procurou a delegacia e denunciou na busca de justiça por sua filha. “Infelizmente nada disso vai trazer ela de volta. Nunca vai apagar o que eu tenho, o que eu sinto todos os dias, como eu acordo. Porque mesmo que seja feita a justiça, ou dos homens ou de Deus, ela perdeu o bem maior, que era viver e ver a filha dela crescer”, se emociona a mãe com o luto e a dor de ter visto a partida de uma filha.
Hoje, o suspeito de ter espancado até a morte a própria esposa está em prisão preventiva, enquanto aguarda julgamento pelos órgãos do Ministério Público de Goiás. “Espero e torço para que essa condenação se efetive, que ele realmente seja considerado culpado. Porque as provas são evidentes. Ele produziu um risco direto, porque uma pessoa do tamanho dele, batendo em qualquer pessoa, realmente acarretaria em qualquer lesão que seja até a morte, que é o que ocorreu com a minha filha”.

Tipos de violência doméstica
A Lei Maria da Penha no capítulo II, art. 7º, incisos I, II, III, IV e V, prevê cinco tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher: física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. A delegada chefe adjunta da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher I, Karina Duarte, explica que a Lei foi criada para atender todas as formas de agressão à mulher, desde um xingamento a uma violência física. “A Lei Maria da Penha é bem ampla no sentido de tentar abarcar todas as formas possíveis de violência doméstica. A lei é uma das melhores leis de combate à violência doméstica do mundo. Ela tem mecanismos judiciais muito importantes e muito eficientes.”
Mas como uma mulher pode provar que sofreu uma violência? A violência sexual e física são mais “detectáveis” por assim dizer do que a violencia moral, psicológica e patrimonial. A delegada explica que não é dever da vítima provar que sofreu violência doméstica, mas sim da polícia. “O ônus de prova não é da vítima. Quem tem que provar é a polícia. Ela apenas comunica o fato, e aí a polícia vai tomar as medidas possíveis para verificar e investigar aquele fato que ela está comunicando”.
A vítima é a maior testemunha das agressões sofridas. A delegada afirma que para a denúncia ser efetivada e o agressor ser responsabilizado, a polícia precisa da colaboração ativa da mulher para narrar a violência. “Precisamos da ajuda ativa da vítima para conseguir produzir essa prova. O crime de violência doméstica, em regra, acontece na intimidade do lar e geralmente são poucas as pessoas que presenciam, então a palavra da vítima é substancial.”
Leis que amparam mulheres vítimas de violência
Embora a falta de regulamentação seja alvo de críticas por especialistas, diversas leis no Brasil amparam mulheres em situação de violência. Conheça algumas delas:
Lei 11.340,- Conhecida como Lei Maria da Penha, estabelece que todo o caso de violência doméstica e intrafamiliar é crime. O texto também tipifica as situações de violência doméstica, amplia a pena de um para até três anos de prisão e determina o encaminhamento das mulheres em situação de violência, assim como de seus dependentes, a programas e serviços de proteção e de assistência social.
Lei 14.674- Prevê o direito de auxílio-aluguel para mulheres vítimas de violência doméstica. O benefício pode ser concedido para vítimas em situação de vulnerabilidade social e econômica por um período de até seis meses.
Lei 14.713- Caracteriza o risco de violência doméstica ou familiar como fator impeditivo ao exercício da guarda compartilhada e impõe ao juiz a obrigação de indagar previamente ao Ministério Público e às partes sobre situações de violência doméstica ou familiar que envolvam o casal ou os filhos.
Em briga de marido e mulher…
Segundo a psicóloga Juliana Gebrim, qualquer pessoa, ao identificar uma mulher que está sofrendo ou já sofreu violência, deve oferecer apoio emocional, escutar sem julgamento e incentivar a vítima a buscar ajuda profissional.
Mas também explica que é importante respeitar o tempo e as decisões das vítimas, além de fornecer informações sobre recursos disponíveis, como linhas de apoio, abrigos e serviços legais. “A sensibilização e a educação sobre o tema também são fundamentais para criar um ambiente de apoio e compreensão”.
A violência doméstica marca a vida de uma mulher e gera traumas para uma vida inteira. Juliana Gebrim explica que os efeitos da violência, seja ela física, psicológica, moral, sexual ou patrimonial, são duradouros e impactam significativamente a qualidade de vida das vítimas. “As agressões podem causar uma série de problemas de saúde mental, incluindo Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), depressão, ansiedade, baixa autoestima, e dificuldades em estabelecer confiança e relacionamentos”.
Por conta disso, a psicóloga explica que procurar tratamento é crucial para a recuperação e para prevenir os efeitos a longo prazo do trauma. “O tratamento oferece um espaço seguro para as vítimas processarem suas experiências, reconstruírem sua autoestima e desenvolverem estratégias de enfrentamento. Também pode ajudar a interromper o ciclo de violência e capacitar as vítimas a retomar o controle de suas vidas”, afirma.
Violência doméstica no Brasil
Cerca de 30% das mulheres brasileiras já foram vítimas de violência doméstica. Segundo a 10ª Pesquisa Nacional de Violência contra a Mulher, realizada pelo DataSenado. O estudo indica que a violência psicológica é a mais recorrente entre essas mulheres, seguida pela física e patrimonial.
A pesquisa ainda faz um “antes e depois” no âmbito da procura de auxílio. O estudo destaca que em 2013 menos de 20% das vítimas procuraram auxílio da família, Já em 2023, esse número sobe para 60%.
Entre as mulheres entrevistadas, foi relatado um aumento na sensação de insegurança. Segunda a pesquisa, 74% das brasileiras perceberam um aumento da violência doméstica e familiar em 2023.
Outro dado novo trazido pela pesquisa, foi o perfil do agressor. O DataSenado afirma que 52% dos casos de violência são praticados pelo marido ou companheiro. Além disso, 15% das agressões vêm de ex-companheiros.
Por Ana Neves, Gabriel Garcia e Luana Nogueira