Tempo fechado: A história de um vendedor de guarda-chuva na Asa Norte

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Quando as nuvens carregadas pairavam sob o céu da cidade de Brasília (DF), guarda-chuvas coloridos e com desenhos infantis se destacam ao fechar do sinal. “Campeão”, “meu chapa!”, “ô doutor!”, “vai um guarda-chuva aí?”.

Nenhum dos centenas de motoristas sabiam dizer seu nome, nem mesmo aqueles que passam diariamente por aquele sinal na Asa Norte. Fabrício Gonçalves, de 43 anos, disputava a atenção dos clientes como outros vendedores.

Natural de Franca (SP), o céu não é aberto para ele desde que teve que deixar a escola  na quinta série. Ele foi obrigado a interromper os estudos para trabalhar ainda criança. Foi na adolescência também que ganhou responsabilidades de adulto. Com o passar dos anos, não conseguia ver futuro para si mesmo em sua cidade natal, conhecida por ser responsável pela maior produção de calçados masculinos da América Latina. 

Pai muito cedo na vida, aos 11 anos de idade, Fabricio veio para a capital do país na véspera do seu aniversário de 18 anos. Acompanhado do tio, em meados de 1995. Buscava uma vida melhor para si e para sua família. 

Vinte e seis anos depois, Fabrício se encontra com 43 anos, pai de duas filhas e um filho, e avô de dois netos. Mas em Brasília, junto dele, está apenas o seu filho mais novo de 15 anos, com quem ele mora em um barraco que construiu no lote de seu tio em Planaltina, a 40 quilômetros da Asa Norte, onde tenta a vida vendendo seus produtos.

Com oito guarda-chuvas em uma mão e cinco na outra, ele exibe cada um deles para os motoristas (Foto: Bernardo Guerra)

Disputa

Nas ruas, todos os carros andavam lado a lado pelo asfalto e eram igualmente obrigados a parar quando a brilhante luz vermelha do sinal de trânsito se acendia. 

Segundos antes, assim que a luz do semáforo se tornava amarela, a conversa que se dava na calçada ao lado se encerra abruptamente, cada um dos vendedores presentes ali já estavam com suas mercadorias em mãos, se posicionando ao lado da pista. Fabrício era um deles.

Carregando consigo mais de uma dúzia de guarda-chuvas, o produto ideal para a época de chuva de Brasília, conhecida por sempre ocorrer nos últimos meses do ano. O paulista passa os dias transitando entre os carros parados, com as mãos levantadas para exibir os diferentes modelos e cores que traz consigo, na esperança de persuadir alguém a comprar seu produto.

Com oito guarda-chuvas em uma mão e cinco na outra, ele exibe cada um deles para os motoristas (Foto: Bernardo Guerra)

O sinal se tornou verde novamente, desta vez, sem que conseguisse vender nenhum produto. Recebeu apenas cabeças balançando de um lado para o outro como forma de lhe dizer que não possuíam interesse no produto, e janelas fechando em sua cara sem cordialidades. Em dias bons, quando consegue vender cinco ou mais produtos, Fabrício consegue voltar para casa com R$100,00 ou mais. Em dias ruins, ele escolhe voltar mais cedo para casa, sem ter conseguido vender nada. Das 7h até às 16h30, de segunda a sábado, ele repete esse mesmo processo a cada luz vermelha que aparece nos semáforos. Ao longo dessas horas, aqueles que têm interesse no produto dão uma leve buzinada ou gritam pela janela.

Quando chove, Fabrício aproveita dos guarda-chuvas que vende para continuar trabalhando, enquanto os outros vendedores são obrigados a parar (Foto: Bernardo Guerra)

Mudança de negócios

Com a aparência cansada, ele olha para os lados, sempre atento aos carros que passam, enquanto comenta sobre as vendas não estarem boas ultimamente, o que lhe motivou a mudar seu material de trabalho de sacos de lixo e panos para guarda-chuvas, encorajado também pelas nuvens escuras que pairam o céu de Brasília nos últimos dias. Cerca de uma vez por semana, a depender de como as vendas vão, ele visita a Feira dos Importados, no Guará, para comprar os guarda-chuvas a um preço mais barato e revender pelas ruas da Asa Norte, cobrando 20 reais cada.

O que poucos sabem é que aquele mesmo homem que carrega mais de uma dúzia de guarda-chuva de cima para baixo, entre os carros parados pelo sinal, diz que já foi cozinheiro em um hotel 5 estrelas de Brasília. Lembra que passou dois anos na cozinha do Hotel Bonaparte, no centro de Brasília. Por lá se sentiu pouco valorizado, decidindo pedir demissão e começar a trabalhar informalmente como vendedor. Tentando manter um bom clima, ele diz que a independência e o fato de ser seu próprio patrão são os grandes diferenciais, mesmo que signifique abrir mãos de direitos trabalhistas ou estabilidade. Escolheu trocar o cheiro de comida fresca e barulhos de fogões e panelas, por buzinas, conversas avulsas de pedestres e a constante fuligem do escapamento de carros e ônibus que transitam por perto. 

“Trabalhar para os outros por menos de 2 mil, eu não vou”, afirmou ele sem tirar os olhos do semáforo da pista, que acendia sua luz amarela pela quarta vez desde que começamos a conversar.

O trabalho informal, segundo justifica, permite que Fabrício chegue e vá quando quiser ao trabalho. Garante que é feliz por ter tal liberdade, tentando sempre ver o lado positivo das coisas. Por outro lado, a informalidade e falta de regras e leis são os principais causadores de conflitos que o paulista se viu obrigado a enfrentar na rua. “Em um mesmo semáforo, não pode haver dois vendedores vendendo o mesmo produto”, essa é uma das regras tidas dentre os vendedores, mas se trata mais de ética do que de lei, e por esse motivo, algumas pessoas a ignoram. Fabrício não tentou esconder nem mudar de assunto quando isso veio à tona, mas deixou perceptível em sua voz que não sentia orgulho de suas ações enquanto comentava das vezes que o tempo fechou e ele foi obrigado a “cair na porrada” com outros vendedores que não respeitaram que ele havia chegado antes.

“Não tá fácil pra ninguém, mas falar que tá ruim é ironia também, porque tem gente que tá muito pior do que eu, em uma cama doente ou sem ter o que comer. Eu, graças a deus, tenho força pra trabalhar ainda, sigo lutando”.

Por Bernardo Guerra

Supervisão de Luiz Claudio Ferreira

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