Projeto social estimula prática de muay thai e adolescentes descobrem vitórias em outras lutas.
“Se você não der a volta por cima, você vai continuar no fundo do poço”. A frase surge de uma adolescente de apenas 14 anos de idade, que vive na Ceilândia.
A estudante Bruna Rodrigues tornou-se atleta de muay thai e coleciona vitórias no ringue, mas principalmente fora dele. Dois anos atrás, a garota perdeu o pai assassinado. Ele era o farol da vida dela. Aos poucos, viu a luz do dia ser trocada pelas sombras da cabeça. A perda fez com que ela desenvolvesse ansiedade e depressão. Foram as pancadas, as luvas e a caneleira que foram, aos poucos, alterando o resultado do combate.
Ela chegou ao ringue como uma das atletas do Aldeia CT, um projeto social na região administrativa onde mora. Foi por uma amiga, que estava tentando ajudá-la a sair dessa situação, que foi apresentada ao muay thai. Ela só queria ficar lá, pois assim conseguia pensar diferente. Aos poucos, se interessou mais pela luta, e virou hábito. As histórias de vulnerabilidade dela e da família aos poucos estão ficando para trás.
Oito armas
O muay thai é uma arte marcial tailandesa conhecida como “a arte das oito armas” devido ao uso dos cotovelos, punhos, joelhos e da combinação das canelas e dos pés. E é esse esporte que une os lutadores do Aldeia CT, um projeto gratuito que hoje em dia conta com apenas seis alunos, mas já passaram mais de 50.
O motivo do menor número atual, segundo o líder do projeto Edmar Barrozo, de 43 anos, ou mais conhecido como Mazinho, é para que haja a retenção, visto que, para ele, no formato antigo, a rotatividade era alta e os alunos voltavam para a rua e seus problemas.
Sem o apoio de alguns amigos e familiares, que não queriam que ela lutasse, Bruna continuou nos treinos até que, após quatro meses, participou da sua primeira competição. Na primeira luta, ela perdeu, ficou triste. Mas desistir não faz parte da sua vida. Na segunda luta, ela venceu, e isso deu esperança de dias melhores. Hoje ela busca seguir no mundo competitivo. “Meu sonho”.
Maior transformação
A vida dela é feita de uma história de resiliência e dificuldades, segundo aponta Mazinho. “A Bruna é mais uma prova de que, de fato, eu encontrei a minha missão na Terra. Ela talvez seja uma das maiores transformações que a gente viu aqui no Aldeia”.
Mas a relação entre o esporte e saúde mental da atleta não é apenas coincidência, ambos estão relacionados. O professor de educação física Filipe Dinato, pesquisador do projeto de extensão em saúde mental do Ceub (Prisme), explica que a prática esportiva pode diminuir impactos do estresse e de outros problemas psicológicos.
Enfrentamento
Dinato contextualiza que, por meio da prática da atividade física, há uma regulação dos neurotransmissores. “Tem uma melhora de forma geral de um estado de saúde mental pensando, por exemplo, na produção de dopamina pensando na regulação de serotonina e tem alguns aspectos hormonais como a epinefrina e a norepinefrina, redução do cortisol”.
Dinato aponta que, no aspecto social, há, por meio da atividade física, uma melhor relação social, favorecimento, por exemplo, de interações mais saudáveis. “E no aspecto psicológico é um processo de enfrentamento do sofrimento”. Assim ocorreu na vida da Bruna. Através do esporte, ela criou relações mais saudáveis, tanto que começou a enxergar o seu mestre, Mazinho, como um pai.
Bruna Rodrigues e Daniel Máximo em tradicional encarada do mundo das lutas.
Foto: Pedro Santana
Refúgio
Daniel Máximo, de 16 anos, é outro atleta que encontrou na luta um refúgio. Nascido na cidade de Taguatinga, no Estado de Tocantins, desde novo, ajudava o avô com trabalhos na plantação. Até que um dia, a mãe, buscando melhores condições de estudos para seus filhos, decidiu vir para o DF, mais especificamente, para Ceilândia. Com a mudança de cidade, também houve a mudança na rotina, e aquelas horas com seu avô foram trocadas por tempo de estudo.
Ele via o irmão mais velho chegar em casa falando sobre os treinos de muay thai que fazia, algo que despertou sua curiosidade. Então, pediu para levá-lo a uma aula experimental. Aos poucos, ele começava a conhecer o esporte, até que em 2020 voltou para Tocantins e para a rotina na plantação com seu avô, mas não havia abandonado a luta, pelo menos não da cabeça.
Em 2021, eles voltaram para o Distrito Federal e Daniel voltou com o foco nos treinos, além de lutar porque gosta. Para ele, o esporte também o guiou para o caminho certo e diz que sente um amor muito grande pelo que faz. E ele não faz só por si, o maior sonho dele é de dar melhores condições para a sua família e poder proporcionar para os irmãos mais novos aquilo que ele e o mais velho não tiveram
“O maior sonho da vida? É melhorar a vida da minha família. Eu e meu irmão mais velho não tivemos festas de aniversários. Eu tenho sonho de fazer os, aniversário deles”.
Entre as idas e vindas ao DF, não conseguia prosseguir na escola. Hoje em dia, ele tem 16 anos e está no sétimo ano. A diferença de idade para seus colegas de sala, que têm na maioria 12 anos, faz com que o ambiente escolar não seja seu lugar favorito.
O atleta já tem suas metas estabelecidas. Ele diz que quer ser reconhecido como um dos melhores lutadores. Com treinos quase todos os dias e várias competições disputadas, ele, aos poucos, progride no sonho. Já ouviu falar que, quando viesse para o DF iria passar fome, virar mendigo e que não conseguiria nada. Porém, conseguiu, em competições, 10 vitórias em 12 lutas disputadas e o reconhecimento já começou a aparecer, inclusive do seu treinador.
Luta e chocolate
Daniel tem um dia a dia puxado. Ele acorda cedo, leva a irmã no colégio e depois vai ao Aldeia CT (os treinos começam às 8h).Em seguida, vai para a escola. Após as suas aulas, que acabam às 18h, ele, o técnico e alguns companheiros do projeto vão vender cones trufados no Plano Piloto. Já com o olho baixo de sono, ele volta para Ceilândia e chega em casa perto de meia-noite.
Fases não são fins
Quando tinha 10 anos de idade, a atleta Ana Clara Pessoa, hoje com 17, conheceu o Muay Thai, gostava muito do esporte e, em 2020, tinha planos de ir para a Tailândia (país de origem da arte marcial). Porém, a pandemia veio e a viagem foi cancelada.
Enquanto não treinava, ela começou a se envolver com atividades ilegais e, assim, se perdeu. “Eu via no rosto dos meus pais a tristeza, a decepção, mas eu estava com a cabeça virada naquele momento”.
No fundo do poço, passou a usar drogas e bebidas. Passou a enfrentar crises psicológicas graves. Viu os pais chorando devido à situação e decidiu que tinha que mudar. E para se recuperar recorreu a um velho conhecido, o muay thai.
O líder do Aldeia CT abriu uma vaga para Ana Clara. Segundo ela, o professor acredita nela e por isso não teve dificuldades para voltar ao projeto.
Hoje em dia, quando ela luta, sente um alívio. É um lugar onde a situação se altera. Quando olha para trás, revê a própria história, diz que a mudança está em andamento graças às lutas na vida e nos ringues.
Por Marcello Hendriks e Pedro Santana