Após período como detento, entregador vive história de redenção

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Seis Horas da manhã. Aqui estou, mais um dia

O despertador tocou. O sol nasceu. Os guardas já estão prontos para a conferência, onde cada preso é contabilizado, revistado e verificado. Um ritual diário. Blandon acordou. Agora o relógio marca 6h da matina. Mas poderia ser três da manhã ou três da tarde. Tanto faz, os dias são iguais.

A memória dessa repetição aterroriza Blandon Moreira, hoje com 28 anos. Essa repetição aterroriza até hoje. O diário de um detento. E foi assim em todas as prisões que passou.

Transferido, uma atrás da outra. Nos Centros de Detenção Provisória (CDP) I, II, III e na Papuda, todas em Brasília. Desde que foi pego roubando em Caldas Novas (GO) aos 22 anos. Ele morava na cidade turística famosa pelas águas termais. Mas os dias se tornaram frios para ele. Após a prisão, o corre é outro.

Crédito: Júlia Castilho

Enquanto isso, a esposa estava grávida. Não pode receber o apoio do marido na gestação e na maternidade. A bebê não nasceu ao lado do pai, que já estava atrás das grades e encoberto de desesperança.

O encontro com a filha foi só uma vez, na hora de registrá-la. E depois de quatro anos preso, uma surpresa: a menina que ele viu uma vez recém-nascida já andava e até já sabia falar “papai”. 

“O que eu senti na hora foi a angústia de saber que eu não ia ter aquelas pessoas que eu amo próximo de mim. Ir para um lugar que eu não sabia o que ia acontecer comigo. O sentimento era de desespero mesmo”, recorda Blandon sobre o momento em que a dívida do crime chegou. O arrependimento já começou a bater. 

Tic-tac-tic-tac

A partir desse momento, os segundos viraram séculos. Antes, o diário de Blandon era o planejamento e execução dos roubos. Agora a rotina era a de um detento, e a de esperar o dia. Uma série de horários e regras que moldam a rotina dos presidiários. Desde o momento em que acordam até o instante em que vão dormir, cada atividade é cronometrada e supervisionada de perto. 

De acordo com dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), coletados em junho de 2023, 644.794  pessoas habitam as celas físicas das prisões brasileiras. Em prisão domiciliar o número é de 190.080 pessoas. 

Nove pavilhões, sete mil homens

Trinta e dois detentos em uma cela com oito camas. “Quem vai dormir no chão?”. Era a pergunta que fez a si mesmo quando viu o cenário. O espaço não foi projetado para acomodar quatro vezes mais o número de detentos. As celas se tornam um labirinto de corpos apertados e cansados. O assunto não muda. Uns contam histórias de assaltos passados enquanto outros detalham planos de crimes futuros. Atmosfera carregada de desconfiança e crime. 

“Lá dentro, você tá preso com outros caras. O dia todo as conversas lá são de crime, de coisas que os caras aprontaram e o que vão aprontar quando saírem. Realmente é um lugar que é terrível”, relata Blandon. 

Em quatro paredes, as pequenas janelas representam mais um dia que não poderá ser vivido. Realidade influenciada por escolhas erradas passadas. Alguns arrependidos. Outros nem tanto. Blandon se isolava dos assuntos do crime porque estava arrependido. O ambiente, conflitos e solidão começaram a mexer com a saúde mental dele.

Crédito: Júlia Castilho

“Eu procurava me isolar mais, ficar mais quieto no meu canto sem conversar com ninguém. Eu cheguei a ficar com depressão lá dentro. Eu senti vontade de me matar”. 

No Brasil, 11.258 detentos morreram dentro de presídios entre 2019 e 2023. Desse total, 921 mortes foram por suicídio, segundo o Relatório Preliminar de Informações Penais (Relipen). 

Será que Deus ouviu minha oração? 

Será que o juiz aceitou a apelação?

A oração de Blandon era diferente. Por muitas vezes a esperança de sair dali morria. E ele queria morrer junto com ela. Era isso que pedia a Deus: que tirasse a vida dele porque não aguentava mais viver aquela tortura. Foi aí que começou a desrespeitar as regras do presídio. “Foi a época que eu pensei em tirar minha vida. Então não obedecia mais as ordens deles. Fiz de tudo para que eles (os policiais penais) pudessem me matar”. 

Foi em uma dessas que os agentes penitenciários quebraram uma das costelas de Blandon porque ele não obedeceu às regras. Doeu e sangrou sem atendimento médico. 

Hoje tá difícil, não saiu o sol

O banho de sol de poucas horas é a maior liberdade de um preso. O regime fechado exige 22 horas por dia dentro da cela. No tempo que sobra, no pátio, todos juntos. Nos banhos de sol, muita briga e confusão. Não tem lugar para todo mundo sentar, nem espaço para todo mundo andar. O único momento que deveria lembrar a liberdade, é na verdade violento. 

Não tem saída pro pátio, no sol ou na chuva, se o carcerário estiver de castigo. No castigo, uma cela isolada, comida quase nunca. Água menos ainda. Sem pátio, sem banho de sol, de chuva, sem nada. Sem colchão e cobertor. “Castigo desumano”. O castigo geralmente vem quando as regras são descumpridas. Mas Blandon denuncia que, por vezes, os presos são agredidos pelos próprios agentes e mandados para o castigo para que ninguém, principalmente os familiares, não vejam a situação. 

Mas o “bate-fundo” é regra. Sempre nus. No pátio com sol, chuva, ou vento. Mais vulneráveis ainda. Nessa hora vulneráveis de todas as formas. Tortura. “Você tem que sair andando pelado. Eles querem colocar todo mundo no mesmo quadrado dentro do pátio. Pelados no sol quente. Se tiver fazendo sol é no sol. Se estiver chovendo, é na chuva. Meu Deus! É de duas a três horas. Três horas desse jeito com a mão na cabeça sem poder se mexer”, descreve Blandon. 

Nada deixa um homem mais doente…

 que o abandono dos parentes

Humilhação. Constrangimento. Falsas acusações. Não existiam sentimentos que impediam a irmã Jaqueline de matar a saudade. São incontáveis horas na fila para ter um encontro com horas contadas. Só 1 hora e 30 minutos. A professora Jaqueline Moreira, irmã de Blandon, era a única esperança por companhia. Raramente a mãe de Blandon comparecia, era principalmente Jaqueline quem assumia essa responsabilidade. Ela o visitava com frequência. No entanto, o preço dessa visita era alto demais. Cada ida ao presídio era uma provação. O trajeto que ela enfrentava era uma prova física e emocional. 

Partindo de Samambaia (DF), onde morava, Jaqueline embarcava em um ônibus até a rodoviária. Um percurso de 40 km. Dali, outro meio de transporte a levava até o presídio, mais 20 km em um caminho sempre cheio de pessoas. O trajeto era uma representação do desafio que ela enfrentava, uma jornada de sacrifício para ver seu irmão, mesmo que por um breve momento. 

Enquanto a vida no presídio era pausada, aqui fora tudo acontecia de forma rápida. Jaqueline estava grávida. A barriga estava crescendo e as visitas diminuindo. E o tempo era muito pouco. Dentro de uma hora e meia Jaqueline tinha que aguardar na fila, ser revistada e visitar o irmão. 

“O tempo de visita não é suficiente porque você passa mais horas do lado de fora aguardando para entrar do que lá dentro. O período que ele estava preso foi justamente o período de pandemia. Foi mais complicado”, conta a irmã. Com a gravidez, Jaqueline não pode mais ir visitar Blandon. 

A visita nos presídios é um momento de esperança e desespero que se entrelaçam. Para Blandon, a ausência de ver um rosto conhecido era uma “ferida aberta na alma”. Nem a esposa, nem a irmã. As duas grávidas e depois com bebês para cuidar. Ver seus companheiros de cela terem encontros com seus familiares, enquanto ele permanecia, por muitas vezes, sozinho, era um doloroso momento que ficou marcado em sua memória. 

No entanto, mesmo diante da dor da ausência, Blandon mantinha uma pequena chama de esperança, uma crença frágil de que, talvez, alguém entrasse para dar pelo menos um “oi”. Blandon conta que quando tinha visita até se esquecia onde estava: “Parecia que no momento da visita eu saía daquele lugar, não estava lá, esquecia de tudo. E aí quando acabava voltava o terror novamente”. 

Blandon explica que os detentos e as visitas tinham que ficar no pátio. Sem espaço para todo mundo. “Ficava todo mundo no pátio. Até  tiravam o banho de sol todos os presos, mesmo tendo visita ou não. Lá você tinha que pagar para você ficar sentado com a sua visita num lugar onde tem sombra. Se não pagasse você ficava rodando com a sua visita no sol quente. Eu ficava lá no chão mesmo no sol, forrava com um lençol e sentava”. 

Esse pagamento ilegal era organizado pelos próprios carcerários. Alguns deles tomavam posse dos bancos e exigiam pagamento em dinheiro para que os outros pudessem sentar com suas visitas. Se os “donos” não recebessem, agrediam os outros presos. 

Não, já, já, meu processo tá aí. Eu quero mudar, eu quero sair

Chegou o tempo em que Blandon conseguiu permissão para o regime semi-aberto. Saía para trabalhar durante o dia, das 8h às 17h, na Administração Regional do Plano Piloto e voltava de noite para dormir. “Lá a gente capinava, carregava meio-fio. Nem que fosse pra quebrar pedra no sol, a gente só quer sair de lá de dentro, não importa o trabalho”, conta Blandon. 

Sempre que Blandon acessava o celular acompanhava o processo de prisão e liberdade. Em um dia comum de 2022, lá estava o que tanto esperava: “deferida a prisão domiciliar”. Aquele dia como qualquer outro se tornou o mais especial. Blandon estava decidido a não voltar para o mundo do crime. 

Voltou para casa. Sua esposa tão diferente. A mãe com mais traços da idade, o sobrinho já uma criança e a filha falando. Ele diz que parecia um outro mundo: “Quando eu acordava de manhã, eu olhava o telhado de casa e pensava: não é possível isso. Parecia um sonho, mas era verdade mesmo”. 

Depende do sim ou não de um só homem

Sentiu também o preconceito aqui fora, principalmente na hora de procurar um trabalho. Olhares e julgamentos. Medo de quem já esteve em um presídio. E era pra ser liberdade. Apesar de livre para andar, comer, beber, conversar e abraçar, Blandon ainda se sente julgado. 

Até pela própria família e amigos. “Guarda o celular”. Ele ouve de longe em um almoço de família. Apesar de tudo, com incentivo da mãe, da esposa e da irmã conseguiu um trabalho de entregador de comida (de plataforma de aplicativo).

Crédito: Júlia Castilho

“Pra que eu conseguisse esse trabalho, foi Deus mesmo porque todo lugar sempre pede o seu título de eleitor que eu não posso tirar. Eles pedem antecedentes criminais aqui fora. Se eu quiser exercer um cargo público, eu não posso”. 

Mas Blandon garante que não vai voltar para uma cela. Porque ele não vai voltar para o crime. E agora ele conta que tudo o que passou o fez valorizar coisas simples da vida: uma conversa rápida ou demorada, abrir a geladeira ou um iogurte, passear na rua, deitar na cama. Perdeu o direito de ir e vir, perdeu comida boa e água à vontade. Perdeu a gradivez da esposa e o nascimento da filha. Perdeu a gravidez da irmã e o nascimento do sobrinho. Mas Blandon ganhou uma nova vida. Ganhou uma nova chance da qual valoriza muito. E não vai perder. 

O ser humano é descartável no Brasil

Em um país onde oportunidades escassas se chocam com necessidades urgentes, Blandon sentiu o preconceito após deixar a prisão. Ele que antes acreditava que o roubo era o caminho mais fácil, nesse momento já enxergava que o melhor mesmo é trabalhar dignamente. 

A principal dificuldade do entregador ao procurar oportunidades no mercado de trabalho foi o medo persistente da desconfiança que enfrentava. Além disso, ele temia não ser aceito quando exigido o comprovante de antecedentes criminais.

Segundo uma pesquisa feita pela Secretaria Nacional de Políticas Penais do Ministério da Justiça (Senappen), no Brasil apenas 16,09% dos presos trabalham, enquanto que no DF a taxa é de 16,90%.

O especialista em ressocialização de ex-detentos, Tedney Moreira, esclarece que o maior obstáculo na reintegração à sociedade é o preconceito contra ex-detentos, que cria estereótipos após a prisão.

“A maior dificuldade que a gente tem na política de retorno de presos é quebrar esse estereótipo, entender que necessariamente essa pessoa vai sair da prisão um dia e ela vai retornar com vida social”, afirma. 

Como possibilidade de política instituída, o professor é contrário à pena de morte e a penas perpétuas. “Não faz sentido que a gente espere que ela se torne  melhor se a gente fazer o mal e tornar mais difícil o retorno dela para a sociedade”, avalia.

Ele entende que a sociedade tem uma tendência de considerar, mesmo depois de solto, alguém que já cometeu um crime, como uma pessoa má e perigosa, alguém que é inimigo da sociedade e da ordem pública. “E isso interfere na forma como a pessoa vai voltar para a sociedade, por isso, por vezes volta ao crime”. 

Mas Blandon se diz corajoso para enfrentar essas eventuais marcas e preconceitos. Ele garante que não vai voltar para o crime. Lembrou quando o despertador tocou e os guardas prontos para a conferência. Agora em casa, o sol nasceu. O despertador tocou para a hora do trabalho. A esposa e a filha do lado. O diário agora é outro, agora de um ex-detento. 

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Por Milena Dias, Nathália Maciel e Paulo Gontijo

Ilustrações: Júlia Castilho

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