A decisão do Conselho Federal de Medicina (CFM) de proibir terapias hormonais para pessoas em transição de gênero traz preocupações aos profissionais que auxiliam no processo. A coordenadora do ambulatório, Isabella Peixoto, qualifica a decisão como “transfobia institucional”.

Publicada em abril deste ano, uma nova resolução do Conselho Federal de Medicina (CMF) retarda o acesso de pacientes ao processo de transição hormonal.
Isso porque a medida aumenta para 18 anos a idade mínima para a pessoa começar o tratamento com hormônios. Já para a cirurgia de redesignação sexual o paciente precisa ter 21 anos.
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Atraso
Para profissionais do Sistema Público de Saúde, as regras atrasam o direito da transição de gênero. A coordenadora Isabella Peixoto, do Núcleo de Atendimento à Diversidade de Gênero do Distrito Federal (NAMB), conhecido como o Ambulatório Trans, diz que a resolução impacta a sociedade. “É uma medida extremamente transfóbica e retrógrada”.
Ela explica que, antes da resolução de abril, os profissionais se baseiam na resolução de 2019 do Conselho Federal de Medicina, que permitia o bloqueio hormonal em crianças e adolescentes. “Isso evita uma disforia muito grande, uma dor e um sofrimento.
A partir do momento que o CFM proíbe isso, a gente começa a ter pessoas dentro dessa faixa etária com sofrimento gigantesco, por não poder fazer esse bloqueio”, lamenta.
“Transfobia”
Para ela, a mudança representa um retrocesso. “Esse para mim é um ponto que demonstra uma certa transfobia institucional de um sistema que é marginalizante.”
Para a coordenadora, a resolução também promove um retardamento no processo de transição de pacientes transgêneros, o que aumenta as filas de espera para o atendimento e implica na sobrecarga dos profissionais de saúde.
Dificuldades
Homem trans e professor de matemática, Eduardo Arcanjo, 26, relembra a experiência na fila de espera durante o processo de transição pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
O primeiro contato foi em 2018 no Hospital Universitário de Brasília (HUB), aos 18 anos. Mas ele só iniciou o tratamento em 2020, ao ser transferido para o Hospital Regional de Taguatinga (HRT).
“Como eu comecei muito cedo, essa frustração veio triplicada, porque a gente espera que: ‘não, eu vou transicionar, eu vou ser respeitado’, e aí vem a frustração de não ter atendimento”, desabafa Eduardo
Além disso, Eduardo revela ter sofrido hostilidades de alguns profissionais da rede pública durante o processo de alistamento e retificação, que tinham dificuldade em separar o pessoal do profissional.
O endocrinologista Odil Garrido, do Ambulatório Trans do DF (NAMB), acompanha pacientes em processo de transição de gênero. Ele afirma que ainda existe muita dificuldade em relação ao número de pessoas transexuais no sistema de saúde público.
“A população trans é muito marginalizada, já existe uma dificuldade de acesso no serviço do SUS. Eu acredito nessa parte social em que todo mundo precisa estar inserido e, é por isso, que eu estou na Secretaria de Saúde”, destaca.
Luta contra a transfobia
Em relação à resolução do CFM, Odil acredita que não foi baseada exclusivamente em fatos científicos.
“A gente acredita que teve um cunho político e não um cunho tão científico, afinal logo após a publicação teve já um um posicionamento da Sociedade Brasileira de Endocrinologia, assinada juntamente com a Urologia e a Obstetrícia, que não concordam com o posicionamento”, explica.
O novo documento oficial do Conselho Federal de Medicina diz que a nova medida “revisa os critérios éticos e técnicos para o atendimento a pessoas com incongruência e/ou disforia de gênero.”
Leia abaixo o documento
Entre as mudanças, a que mais chama atenção é a proibição do uso de bloqueadores hormonais para crianças e adolescentes, assim como a inicialização da terapia hormonal em adolescentes com idade entre 16 e 18 anos.
A medida anterior já permitia esses tipos de tratamento. Agora, é necessário que os pacientes não apenas atinjam a maior idade como também façam um ano de acompanhamento psicológico, para que então possam dar entrada no processo de hormonização.
Além disso, a nova regra proíbe procedimentos cirúrgicos com potencial efeito esterilizador antes dos 21 anos de idade. Porém, a antiga resolução também autorizava a realização desses procedimentos caso o indivíduo fosse maior de idade – 18 anos – e estivesse em condição de consentimento.
Outro lado: “Não é transfobia”
Em nota à Agência de Notícias CEUB sobre as alegações de transfobia, a assessoria de imprensa da CFM afirma que oO CFM não considera que a resolução institucionaliza a transfobia.
“Pelo contrário. A resolução 2.427/2025 prevê, por exemplo, o Projeto Terapêutico Singular (PTS), conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas, resultado da discussão coletiva de equipe multiprofissional e interdisciplinar a partir da singularidade das pessoas assistidas, que permite promover atenção em saúde integral”, aponta a nota.
A instituição também reitera que “na exposição de motivos da resolução, publicada no site do CFM, há mais de 100 estudos científicos relacionados às referências” e que “respeita as opiniões contrárias”.
Além disso, o CFM aponta que “irá se manifestar nos autos e reitera integralmente a revisão que fez dos critérios éticos e técnicos para o atendimento a pessoas com incongruência e/ou disforia de gênero por meio da Resolução 2.427/2025”.
A entidade acrescenta que “um dos objetivos é proteger crianças e adolescentes de procedimentos que, muitas vezes, são absolutamente irreversíveis, podendo trazer problemas e sequelas para toda a vida”.
O CFM deseja garantir que “com a publicação da resolução, as pessoas trans continuarão tendo acesso integral a serviços do SUS”.
“Não é solução”
Entidades que criticaram a decisão do CFM, como a Associação Brasileira de Estudos em Medicina e Saúde Sexual (ABEMSS) e a Associação Brasileira de Obstetrícia e Ginecologia da Infância e Adolescência (SOGIA-BR), afirmam em uma carta de posicionamento que haveria outras formas de abordar o assunto.
“Proibir este caminho não deve ser a solução proposta para melhorar o cuidado oferecido às pessoas transgênero”.
Para as entidades, a nova resolução justifica que são necessárias evidências robustas para minimizar danos. “Neste sentido, é importante lembrar que já existem diversos estudos mostrando baixas taxas de arrependimento e melhora da qualidade de vida de pessoas transgênero sob terapia hormonal ou submetidas a procedimentos cirúrgicos. Ademais, é imprescindível permitir que novas pesquisas continuem acontecendo”, cita um trecho do documento.
Por: Beatriz Ocké, Cecília Péres, Maria Paula Valtudes, Vinicius Fernandes, Riânia Melo e Maria Eduarda Barros Fernandes
Sob supervisão de Isa Stacciarini e Luiz Claudio Ferreira