“Uma empregada doméstica com o sonho de virar escritora”. Foi assim que Isaura Benevides, conhecida como Isa, se apresentou para nós. “Primeira coisa que eu precisava era me reconhecer. E quando eu me reconheci, foi muito grandioso.” E com esse novo poder, ela foi atrás de alguém que contasse sua histórias.
Às 11h do dia 11 de abril, abrimos, sem imaginar o que iríamos encontrar, uma solicitação de mensagem na rede social. Escondida em uma aba, poderia ser que passasse despercebida, mas alguma coisa naquele perfil com foto de girassol nos chamou atenção.

Inicialmente, com uma sugestão de pauta sobre o Dia da Empregada Doméstica (27 de abril). Percebemos que por trás daquela pequena introdução, estava a história de vida de uma menina, que teve que se tornar mulher muito cedo.
A necessidade de trabalhar fez com que ela deixasse não só os estudos para trás, mas também sua infância e com isso, seus sonhos.
“Como eu me considero livre e tudo começou agora, eu com 40 anos, eu não tenho mais porquê não ter um nome e uma foto lá. Eu já fui presa na referência”.
Essa frase de impacto serviu para dar o tom no resto da entrevista. Na verdade, chamar de entrevista seria um desserviço à conversa cheia de histórias e referências. Foi um filme em palavras. Um livro ganhando vida a cada minuto.
“Foi na rua Marabá que eu comecei a sonhar“
De um lado, a Avenida Ribeirão Preto, de outro, a Avenida Osasco. O estado de São Paulo começava a entrelaçar a sua história com a de Isa bem ali, na rua Marabá, de Cuiabá. Mas esse novo capítulo será contado depois.
Debaixo do sol quente, a criança, que hoje nos conta sobre seu mundo, acompanhava a mãe vendendo sabão pelos bairros da cidade.
Nesses caminhos muitas histórias foram criadas. O pedido da mãe em acompanhá-la nunca era negado. Para a pequena Isa, aquilo era sinônimo de aventura. A mãe, caminhando com o grande pote apoiado na cabeça, mostrava o arredor e ensinava como podia.
Uma lembrança recordada quase que de imediato, se referia ao momento em que a matriarca lhe apresentou o girassol. Em um belo enredo, aquela simples flor ganhava movimento e enamorava o Sol.
Ensinava como podia. E mal sabia ela, que naquela tentativa de distração, nutria o amor de uma contadora de histórias.
Nas andanças, se tivesse uma folha de papel sobrevoando na rua, ela destinava às mãos de Isa. “Olha isso aqui, filha, isso é parte de uma história, não é a história completa. Mas você sabe o que você faz com isso? Você senta aqui e lê. O que não tiver antes e o que não tiver depois, você cria”
Além da criatividade em construir essa janela para um novo universo, Isa também relembra que desde a infância tinha interesse em livros. A sua travessura era pegar os gibis do pai, especialmente do ‘Conan, o bárbaro’, e ficar empoleirada na árvore, protegida, escondida e saciando a vontade de ler. Mas isso não impedia que na sua vida tivesse espaço para as tirinhas da Mafalda, ela era fã daquele recorte no jornal.
Um adendo importante: a contadora de histórias, que ainda se descobria, tinha uma admiração pela letra do pai. “Meu pai tem uma letra muito bonita e eu queria ter uma letra igual a dele. Então, ele me falava para eu pegar um livro qualquer e ir circulando as letras para ir aprendendo e imitando. Para eu imitar, eu tinha que ler. Mesmo não entendendo o que estava escrito, eu lia. Aí a partir daquilo, eu ficava imaginando, coisa de criança”.
Letras eram desenhos, se tornaram palavras e cada novo significado daquela escrita virava a sequência de uma história a ser contada.
Quando Isa tinha 13 anos, a família, já habituada com o calor de Cuiabá, passou a sobreviver no frio da cidade paulistana de Campinas. Essa foi a menor das mudanças para a jovem. Ali, ela teve que se tornar mulher.
de Beauvoir à Benevides
“Não se nasce mulher, torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade”, já dizia Simone de Beauvoir. E a sua pensadora contemporânea, sujeito dessa história, é um exemplo da quebra de destinos. Sem, no entanto, ter passado antes por desafios.
O momento em que sua infância foi extraviada e a Terra do Nunca só era encontrada no livro de J. M. Barrie veio antes de qualquer desejo para uma vida plena. Foi neste período que Isa Benevides começou a acompanhar a mãe e sentir o que era o trabalho de empregada doméstica.
“Ou eu ficava em casa ocupando o lugar dela, junto ao meu irmão mais velho, ou eu ia ajudá-la no trabalho para que tudo corresse mais rápido e ela pudesse vir para casa mais cedo e passar mais tempo com os filhos”.
Enquanto auxiliava a sua mãe, Isa era devidamente instruída a não incomodar. Suas funções eram específicas e ordenadas. Quando não estivesse brincando com os filhos da patroa para entretê-los, ficaria quietinha em um canto.
Em suas próprias palavras, a realidade vivida foi transformada em poesia:

Culpar a mãe por essa vida nunca passou pela cabeça da Isa. Tudo acontecia por inocência, falta de instrução e recursos, é nisso que ela acredita. A partir da experiência de anos na profissão, colocar-se em um lugar de submissão e certificar-se de que a filha não faria nada de errado era uma forma de garantir o emprego. E, com isso, garantir a sobrevivência da família.
Nesses trajetos em companhia da mãe, onde a pequena Isa mergulhava no trabalho doméstico, naturalmente ela foi sedimentando essa profissão em sua vida.
Havia estudo, mas também havia precariedade educacional. A pessoa que era sua figura materna não tinha tempo para dar atenção e acompanhar os estudos de cada um dos seis filhos. Então, Isa se rendeu à conjuntura e acabou deixando para depois. Um “depois” que não chegava, mesmo que ela quisesse.
Eu só queria estudar
A jornada de Isa como mulher inicia um novo capítulo. Ela foi mãe na adolescência. Aos 22, já tinha na barra da calça os seus três filhos. Foi lá, em Campinas mesmo, que ela conheceu o pai deles e se casou.
Ao entrar nessa etapa, conforme sua fala progredia, percebemos uma mudança no semblante. A protagonista até então sorridente, agora parecia hesitante em falar conosco. Ao reviver este momento, ela volta a sentir uma parcela da dor.
Depois de ter os meninos, Isa voltou a estudar. O marido “deu uma pirada”, ele mudou. O carinho se transformou em abuso mascarado de proteção.
“Quando eu volto a estudar, dou de cara com uma vida que eu sempre quis. Quando fui fazer o supletivo, eu vi que eu posso tudo”.
Ao chegar em casa da escola, ela compartilhava empolgada sobre o que tinha aprendido e os amigos que tinha feito. O marido não esboçava a mesma felicidade. Pelo contrário, o ciúme doentio tomava conta dele. Além das agressões, ele dizia: “Mulher casada não tem que ter amizades assim não, só com outras mulheres casadas”.
E mais uma vez os estudos foram interrompidos. Entre ficar com o pai dos filhos e estudar, o “deixa para depois” ganhou espaço. Isa tinha como referência para todos os efeitos o casamento de seus pais. A mãe viveu uma vida de violência com o pai, mas mesmo assim, ficou com ele. E está com ele até hoje.
A mãe tinha convicção de que permanecer naquele relacionamento era um dever, mas também uma vitória. “Só que até que ela vencesse, todos os sonhos dela foram enterrados. Hoje ela tem várias consequências, problemas de saúde, por querer vencer. Isso a gente herda, inconscientemente”, reconhece Isa.
Fuga, exílio e sobrevivência
O fim desse ciclo de abuso ocorreu num extremo. Isa precisou chegar ao limite. Ela parece processar as próximas palavras e eventualmente nos pergunta se já ouvimos falar de histórias de violência. Especificamente aquelas em que homens batem em mulheres e cortam os cabelos de suas companheiras. Respondemos que sim. Ela deixa as palavras saírem e a frase que temíamos toma forma: “Eu já vivi aquilo ali”.
No fatídico dia, o marido não bateu nela, mas também não demonstrou hesitação em violentá-la. Ele consentiu que outros dois homens a espancasse. “Como você faz isso com a mãe dos seus filhos?”.
No momento em que eles recalcularam a rota para decidir como poderia agredi-la ainda mais, uma distração dos opressores, ela fugiu. Foi tudo muito rápido.
Pulou o muro, caiu do outro lado, correu até uma uma linha de trem e pediu ajuda a um segurança. Inicialmente, ele não quis ajudá-la. Imaginou que fosse apenas uma viciada em drogas, machucada e com os cabelos mal cortados. Por fim, ao dar todos os testes de sua lucidez, ela o convenceu a ajudar. E para a delegacia eles foram.
Da polícia, de modo claro, mas ausente, ela recebeu apenas uma recomendação: “Esse cara vai te matar, foge daqui”. E assim ela fez. A irmã sugeriu que o destino de sua segurança fosse Goiânia, terra natal dos pais. Mesmo não conhecendo nada e nem ninguém, ela se exilou com os três filhos na capital de Goiás.
Alice no País das Maravilhas
Na pergunta seguinte, Isa voltou a esboçar um sorriso. A aura de liberdade da contadora de histórias voltou a transparecer e os olhos brilharam. Ela começa falando sobre a escrita. Para ela, além do prazer, é uma forma de desabafo.
Estávamos ansiosas para saber qual era a motivação dela em escrever. Sem hesitar, ela responde: “Raiva. E eu queria tanto falar que seria outra coisa. Não adianta eu querer ficar forçando uma barra, dizer que é por causa das flores do jardim, romantizando. Hoje eu consigo entender que é fuga.”
Em Goiânia, Isa seguiu a função de empregada doméstica e babá para sustentar os filhos, que agora eram adolescentes. Entre os empregos, um específico marcou a memória dela, de forma negativa.
Um dos condomínios mais nobres da cidade, com gente rica e famosa. Ao chegar para a entrevista, Isa ficou deslumbrada, se sentiu em um conto de fadas. Parecia um cenário de filme ou de uma daquelas novelas da TV. Ela nunca havia entrado em contato com aquele nível de riqueza.
A dona da residência disse ver graça, inteligência e boa aparência na protagonista. Dessa forma, poderia moldá-la e ensinar boas maneiras para que pudesse servi-la. Era como uma “empregadinha de novela” mesmo.
O salário, três vezes maior que o padrão, não dava para ser ignorado. Ela imaginou que assim poderia dar uma vida melhor aos filhos. Depois entendeu o porquê, Isa seria a única funcionária da mulher. Ela foi com consciência dos boatos que corriam pela vizinhança, ninguém parava ali.
Mas aquela casa guardava algo inesperado pela Isa, em um dos cômodos tinha uma biblioteca enorme e muito bonita, com livros de todos os lugares do mundo. “Aí eu limpando ficava só lendo o ladinho do livro [lombada], onde fica o título e ficava imaginando o que poderia estar escrito lá”.

Em uma ocasião, durante o seu trabalho, percebeu que a filha da patroa deixou um livro na cozinha. O único lugar da casa que não tinha câmeras. O título era “O diário de Anne Frank”.
Aquela empregada que cresceu com vontade, se deparou com uma oportunidade e a abraçou, ela leu. Ia ao banheiro e ficava escondida passando as páginas.
“Esse foi o meu primeiro contato com esse livro, que geralmente é indicado para crianças. E eu fui ler com 35 anos. Eu não sabia quem era Anne Frank, eu não sabia nada sobre holocausto”
Como passou a ter acesso à internet, Isa realizava pesquisas e fortalecia o desejo pela leitura. Quando comentava sobre essa paixão, a patroa debochava dela. Um dia, Isa foi até uma livraria, pois havia sobrado vinte reais do salário e decidiu que tentaria comprar algo. Lá, infelizmente, encontrou a patroa, que questionou a sua presença naquele espaço.
“Eu fiquei com vergonha de falar que eu estava ali para comprar um livro, porque eu sabia que na segunda ela iria debochar daquilo. Ela como uma pessoa tão inteligente, não sei porque fazia aquilo comigo, às vezes era para ‘sarar’ alguma ferida dela”.
Com a primeira tentativa de comprar um livro frustrada, no caminho ela preferiu comer uma coxinha e teve que se contentar em ler o rótulo da Coca-Cola. Com isso, a palavra “depois”, volta a surgir na nossa história. Mas afinal, depois quando?
Em meio as maldades da patroa, Isa até pensava em tentar romper com esse ciclo e deixar o emprego. Mas toda vez que pensava em se revoltar, imediatamente vinha a lembrança dos três filhos em casa. Então, ela se refugiava na biblioteca, lugar em que sua imaginação poderia distraí-la da realidade.
A sensação era de ter caído no buraco da Alice no País das Maravilhas. Nessa história, ela era a Alice e a patroa, a Rainha de Copas.
O corpo cansado e a mente criativa
Para garantir a permanência nos empregos, em cada casa que trabalhou, Isa sentiu a necessidade de criar uma personagem para agradar suas patroas. Porém, hoje, aos 40 anos, encontra-se feliz e com liberdade para ser genuína em suas escolhas na casa em que trabalha. Agora ela diz saber o que é ser querida de verdade, tratada de igual para igual.
Entretanto, a patroa já está avisada: este é o último ano de Isa como empregada doméstica. Os filhos já estão crescidos, ela já é até avó. Depois de trabalho infantil, gestações e abusos, o corpo está cansado. Chegou a hora de investir em um novo capítulo.
“Hoje eu sei o quanto esses abusos me afetaram. Quando você está sofrendo, você nem está vendo, mas está absorvendo, porque tem um bloqueio que é a necessidade para estar suportando aquilo.”
Dona Isa e seus três filhos: um retorno na história
Criar três filhos praticamente sozinha não foi fácil. Ainda lá em Campinas, Isa já via a história se repetir: ela trabalhava fora o dia todo e não tinha tempo para estudar com os filhos. Isso era uma frustração para ela.
Ensinava como podia. Empolgada, ela conta sobre as histórias que inventava para os meninos não terem medo de passar na linha do trem. Até Indiana Jones fazia parte dessa brincadeira.
Para ela, isso também era uma forma de fazer com que os filhos tivessem acesso à cultura. Julgando pela capa dos filmes, Isa criava toda uma narrativa. Ela levava os meninos para a locadora, apontava para um título, dizia que já tinha assistido e inventava uma história sobre o filme.
Assim como a mãe fazia, Isa também usava os contos como forma de distração da realidade: “Eu acho até que eu fantasiei demais com eles, que eles ainda vivem lá em Nárnia. Eu abri a porta do guarda-roupa e coloquei eles lá dentro como proteção.”
Às vezes, a protagonista questiona se poderia ter feito mais. Hoje, entende que fez tudo que estava ao seu alcance. Agora, eles já adultos, ficam lembrando de alguns episódios. “Você sempre foi esquisita assim, mãe”.
Agora, as histórias de Isa não ficarão restritas aos filhos. Ela quer contar para o mundo.
Revolução e uma xícara de café
“Eu quero atingir além das minhas colegas de trabalho. Você sabe o fuzuê que é no parquinho do condomínio que eu trabalho? Há uma revolução.”
Essa revolução não é nova, mas ainda encontra dificuldades em se enraizar nos mais diversos ambientes. À luz de Angela Davis, quem ela conheceu a pouco, mas já admira e se espelha nas palavras, vê como missão de vida fazer essa revolução diária. Isa sente que precisa fazer isso.
Uma história real que poderia servir de anedota. A menina de dentro da sala da portaria abriu a janela do escritório. “Ela abre e me dá um cafezinho, sabendo que eu não gosto de copo de plástico, recebo a bebida na coisa mais linda do mundo. Quando ela me deu aquela xicrinha, eu senti que tinha quebrado uma barreira ali.”

Ao ser indagada sobre o seu sonho, Isa reflete. Em uma simples resposta, porém essencial, ela diz que o seu sonho é o mesmo significado daquela janela. “Joga o sonho para o universo, vai quê, né? Está ao meu alcance. Claro que está.”
O atual marido da Isa disse uma vez que é pela escrita que ela vai finalizar o ciclo. Ela disse que sim. É desse jeito e acabou. “Eu sei que eu posso, então agora eu quero.” Ela tenta sair do lugar de frustração, apesar de não ter feito muitas coisas que gostaria, está convicta de que ainda dá tempo.
O que encontramos na sua página de Instagram (@isa_abenevides) é apenas uma amostra da sua habilidade como contadora de histórias. Mas ela quer mais.
Um dia desses estava olhando para uma livraria e imaginando o seu livro atrás do vidro. Ao ver que Isa tinha ido para outro mundo, o marido perguntou o que ela estava pensando. Sua resposta, em meio a risada dos dois, foi de que já conseguia ver o livro pronto ali.
Ela não quer mais ter limites impostos, quando a hora chegar, já está pronta para fazer uma carreata, com direito a carro de som. E um detalhe final, mas importante nessa história, o girassol estará acompanhando a sua jornada, assim como acompanhava o sol de Cuiabá.
O “depois” finalmente chegou, agora, apresentamos à você, leitor, Isa Benevides. Uma mulher que já trabalhou como empregada doméstica, mas em nenhum momento isso definia quem era ela. Na torcida de um sonho virar realidade, Isa é escritora. Sempre foi.
Por Juliana Weizel e Maria Tereza Castro
Fotos: Divulgação
Supervisão de Luiz Claudio Ferreira